Archive for the Reflexões em mi bemol Category

Festa de Aniversário

Posted in Reflexões em mi bemol on 12/08/2010 by reginasardoeira

       

 

RENÉ MAGRITTE, As Férias de Hegel

 

 

 

FESTA DE ANIVERSÁRIO

(Epílogo)

           Pouco sabemos da vida, é verdade e muito menos sabemos da morte, por mais teorias ou alegados relatos que possam fazer-se de uma e de outra. Hegel escreveu que viver é a mesma coisa que morrer e eu, que sou apenas uma estudiosa diletante (como pode perfeitamente demonstrá-lo esta espécie de autobiografia), sem nunca me deter muito a penetrar na orgia dialéctica do professor alemão, interpretei a citação do filósofo mais ou menos assim.

            Vida e morte constituem o todo da existência humana e uma delas encontra a outra num determinado ponto, formando um círculo fechado, cujas pontas se dissolvem no exacto momento em que se unem. Por outro lado, se supusermos que cada indivíduo nascente inicia, vivendo, um percurso paulatinamente orientado em direcção ao desfecho natural, a morte, entenderemos a sentença hegeliana, uma vez que, nos extremos, vida e morte coincidem já que uma conduz à outra, uma é a condição inevitável da outra. Ora, se essa coincidência ocorre no fechamento do círculo dialéctico, estando sempre latente no percurso, mas perdida, enquanto coincidência, pois tendemos a sentir-nos vivos enquanto temos a aparência de vivos e acreditamos ser impossível sentirmo-nos mortos, a partir da hora em que deixarmos em definitivo de ter consciência de nós, porque não há-de despertar, enquanto consciência, a sensação de morte ainda que travestida da ilusão da vida?

            Passei 80 anos de vida crente na trivialidade perfeitamente ordinária e comezinha da minha existência, da absoluta realidade dos eventos do meu quotidiano e ainda do círculo de relações que estabeleci. E contudo, no dealbar desse aniversário, toda a linearidade se desmoronou e eis que percebo novas dimensões do ser e do estar, novos aspectos de mim e do mundo em volta de mim! Compreendo que não vivi um sonho, pois dos sonhos é comum despertarmos, para os situarmos exactamente no patamar da realidade onírica, nossa, sem dúvida, mas incapaz de desfazer a trama coerente da realidade que constitui aquilo a que chamamos vigília. Por essa razão, depois de proceder a algumas investigações, de que fiz antes o relato sucinto, mas que de modo nenhum lançaram claridade sobre a razão de ser do fenómeno do meu rejuvenescimento e regressão, sobre o encontro com Luís de Múrcia e a minha viagem a Portugal, uma outra teoria acabou por ganhar supremacia. Percebi que aquela noite em que os meus filhos se uniram à minha empregada Giulia a fim de me homenagearem com uma festa de aniversário foi, efectivamente o momento do fechamento do círculo da minha existência. Morri, portanto!

            Nunca pensei ser possível conjugar este verbo assim, no pretérito perfeito, e poder dizer como acabei de fazê-lo: Morri!, mas, a crer em Hegel (ou na minha interpretação da legenda hegeliana que citei antes), pronunciar assim este verbo, neste tempo, é tão  legítimo e mesmo lógico como afirmar: Vivi! pois, no extremo da interpretação destas afirmações, elas significam precisamente o mesmo! Logo, a minha festa de aniversário não foi realmente a comemoração de um aniversário mas, provavelmente, a cerimónia ritualística do velório e do enterro. Curiosamente, estive presente nesses cerimoniais, não como o esperavam os meus filhos e a Giulia, mas na posição inversa, ou seja, olhando para todos com a lucidez de quem rompe as amarras com a trivialidade e acede finalmente a viver a excepcionalidade transcendente, que em si habita, mas que o quotidiano esfarela dia após dia, hora após hora.

            Pensam os homens, na sua racionalidade trôpega, que a morte elimina a consciência, mas eu sei perfeitamente que não. Chamo-lhe consciência, reparem, e não alma, ainda que talvez todos me percebessem melhor se eu usasse esse termo gasto, essa entidade oriunda de uma espécie de outra dimensão, que ninguém entende, de facto, mas que a todos parece satisfazer, quando se trata de explicar fenómenos transcendentes ou para lá da vida. Mas entenderemos mesmo esta centelha que nos anima constantemente e nos leva a perceber-nos enquanto sujeitos, a perceber o ruído dos outros em torno de nós, da terra e da natureza, do real e do imaginário, tudo isso a que simplesmente chamamos consciência?

            Todas as explicações são deficientes. Produto neuronal, excreção do cérebro que segrega o pensamento, como o fígado segrega a bílis, milagre outorgado pela divindade ao ser predestinado como rei da criação…mas afinal onde localizamos fisicamente a consciência? Não a localizamos, especificamente, ela não é um órgão como o coração ou o estômago mas preside ao seu ordenamento e, quando eles deixam de funcionar, a consciência continua lá, coesa e muito mais eficaz, pois deixou em absoluto de depender da actividade mecânica e condicionada dos órgãos do corpo.

            Obviamente que a minha consciência não quis assistir ao desmoronamento do corpo, a que de certo modo pertenceu, durante 80 anos. A minha consciência rejeitou o cerimonial fúnebre e hipócrita a que submeteram o corpo ao qual emprestou algum sentido, durante um certo tempo, mas que se lhe tornou alheio naquele instante limite. Livre das amarras confinantes do organismo a minha consciência lançou-se em voos, acedeu a tempos e a vivências deixados suspensas pela condição específica do organismo que serviu. A minha consciência está viva, habita um tempo e um espaço, o mesmo de que era presa enquanto o organismo a amarrava; mas, em simultâneo, tornou-se capaz de romper os limites, e ora vai, ora vem, em viagens assombrosas, simultaneamente mentais e corpóreas, preenchendo lacunas, encontrando companheiros, criando universos e transcendendo-se continuamente. Tornou-se divertido olhar à minha volta e imaginar quantas daquelas pessoas estariam mortas, sem disso suspeitarem e, aos poucos, consegui mesmo estabelecer a diferença entre os vivos-vivos e os vivos-mortos, entre os que entendiam a excepcionalidade da tomada de consciência, após a desagregação fisiológica, e os outros ainda mergulhados em duplicidade e angústia. Não narrávamos uns aos outros o que sabíamos, era uma espécie de pacto, aquele que tacitamente travávamos, mal nos reconhecíamos. E assim conquistei a minha eternidade, sabendo que aquela era a única salvação da espécie humana  mas que ninguém o tinha ainda descoberto e que, por isso, era cedo demais para fazer revelações e pôr a ciência em acção. Mas o estado a que ia chegando a sociedade dos homens, esses que ainda eram vivos e levavam existências anódinas e repugnantes, como foi a minha antes dos 80 anos e da festa do meu aniversário, revelava sinais tão alarmantes de fim de tempo que eu sabia estar próxima a hora da revelação ao mundo da minha experiência, afinal partilhada por uma elite, como em tempos profetizou o filósofo do eterno retorno.

            De Portugal trouxe uma réstia de saudosismo e, sempre que vejo chegar Setembro e o Vesúvio parece crescer sobre a Baía de Nápoles, ataca-me a nostalgia intensa do meu companheiro de viagem e suspiro, desvairada, durante uns dias, pela figura morena de olhos amendoados que dá pelo nome de Luís de Múrcia e me ensinou os segredos de mim mesma.

           As primeiras chuvas, porém, devolvem-me a serenidade por inteiro.

           

           

MORTO AO CONTRÁRIO

Posted in Reflexões em mi bemol on 19/01/2010 by reginasardoeira

 

 

 

 

 

MORTO AO CONTRÁRIO

     

 

        o morto estava a dirigir-se para cá e vinha outro atrás dele e não era um funeral    como poderia sê-lo que ideia patética nos funerais são os vivos que se deslocam uns atrás dos outros e o morto vai deitado mais à frente num habitáculo esquisito sem suspeitar da procissão que o segue  

portanto de nenhum funeral poderá tratar-se a menos que seja um funeral ao contrário um larenuf 

(percebem)

palavra inventada para exprimir uma espécie de comitiva de mortos a enterrar os vivos

(pois sem dúvida é disso que se trata)

porém se o morto estava a dirigir-se para cá e se vinha outro atrás dele e cá não é o cemitério nem nada mas antes uma honesta e vulgar residência burguesa

(ou será que se trata de um oirétimec e então faz sentido dizer que um morto com outro atrás estava a dirigir-se para cá num larenuf?)  

Presenciei o espectáculo e custou-me a conceber que aquele morto e o outro atrás pudessem deslocar-se a um ritmo tão veloz e mais tarde entendi tratar-se afinal de um otrom

e logo tudo se aclarou mentalmente já que enquanto o conceito de morto se adequa mediocremente ao acto de dirigir-se seja para onde for o conceito hipernovo de otrom é permeável a praticamente tudo.

E então o otrom estava a dirigir-se para cá e vinha outro atrás dele

e já não era necessário recorrer a imagens usuais e ainda por cima mórbidas de funerais ao contrário ou de siarenuf

(neologismo em tudo distinto do singular que posto na devida linha se parece muito com o plural e que assim invertido ou pervertido soa de modo muito diferente e nem sequer a um plural se assemelha!)

Percebi logo a seguir que estava a ser leviana nesta absoluta inversão das letras de palavras comuns pois uma vez sujeitas a uma tal transgressão as palavras mostram de imediato o seu poder

já que larenuf não designa absolutamente nada de conhecido enquanto que a sua contrária em termos de ordenação dos signos desencadeia uma sucessão de imagens de um rigor extremo onde quer que seja pronunciada e perante os ouvidos de quem quer que seja.

Otrom larenuf oirétimec siarenuf  e eis aqui inventada uma nova língua onde otrom já não é morto ao contrário

porque ser morto ao contrário não é nenhum estado conhecido ser morto ao contrário não tem a mínima substância ou razão de ser e por isso mesmo é possível acrescentar imagens novas a uma designação também ela nova.

Assim sendo podemos recomeçar dizendo que o otrom estava a dirigir-se para cá e vinha outro atrás dele.

 

DOS MUROS

Posted in Reflexões em mi bemol on 10/11/2009 by reginasardoeira

      

DOS MUROS

 

         Evocar hoje o Muro de Berlim, evocar hoje o Derrube do Muro de Berlim não passa de um pretexto para outras digressões especulativas. Se assim falo é na exacta medida em que o nosso mundo vive de efemérides e uma efeméride não é mais do que uma recordação descontextualizada de fenómenos cuja especificidade já não é possível entender cabalmente. Os documentários, filmes e exposições sobre o evento têm sido a nota dominante dos últimos dias, pelo que será desnecessário aludir às circunstâncias históricas e políticas que determinaram a construção do Muro em 1961 e que conduziram ao seu derrube 48 anos depois, há vinte anos portanto. Circunstâncias históricas e políticas, é preciso não esquecer. Circunstâncias que estavam presentes em 1961 e que duas décadas depois, subitamente, deixaram de fazer sentido: porque o Muro de Berlim caiu, aparentemente, por si mesmo, sem convulsões, sem luta. A História é isto mesmo: um ciclo racional engendrado pelas necessidades ou pelos desejos ou pela insanidade dos povos, uma espiral dialéctica em que as contradições, submersas em períodos mais ou menos longos de aparente estabilidade, se enunciam de súbito provocando revoluções, guerras, chacinas, atentados e discórdias de todos os géneros. Poderíamos dizer que tais momentos deveriam ser evitados, poderíamos lamentar os períodos sangrentos de hostilidade e de luta fratricida, poderíamos mesmo desejar a utopia da paz perpétua, a lenda da confraternização universal. E contudo os milénios transcorridos da história dos homens atestam, com evidência plena, a inevitabilidade da guerra, da revolução, da luta ao memo tempo que demonstram a sua necessidade em prol da evolução. A guerra é então uma necessidade, uma condição de progresso? A guerra não pode ser suprimida sob pena de assistirmos à inevitável degeneração dos povos, ao seu declínio e estagnação? Não responderei a tal questão porque as evidências estão aí, hoje como na antiguidade, hoje como no contexto das duas grandes guerras mundiais, hoje como num futuro próximo em que o homem terá que combater o homem, terá que combater-se a si mesmo, portanto, para poder erguer-se e suportar-se enquanto homem.

       Entretanto, os muros construídos e a construir, os muros abatidos e a abater representaram e representam ocasião de defesa de princípios, de ideais, de sensibilidades – o muro é uma parede levantada atrás da qual nos protegemos e nenhuma habitação humana se manteria erguida sem semelhantes suportes – mas o muro é simultaneamente a barreira que impede o devassar da intimidade, a dissolução dos princípios, a quebra dos ideais, o prejuízo das sensibilidades. E por muito que queiramos hoje olhar o Muro de Berlim como a imagem macabra de um ultraje aos direitos humanos, à lógica civilizacional, à sensatez, por muito que aludamos à construção e manutenção do Muro de Berlim como sendo um atentado à liberdade e à livre circulação dos povos o certo é que não temos outro remédio senão justificá-lo, à luz da circunstância que o engendrou. E será esse o caminho inicial que seguirei na minha exposição.

       Na época que marcou a construção do Muro de Berlim uma dicotomia politica atravessava a Europa: do lado ocidental, e após os tratados decorrentes do final da Segunda Guerra Mundial, o capitalismo e os regimes designados como democráticos firmaram-se, gerando uma economia de mercado centrada no consumismo, na ostentação, na busca de riqueza e prosperidade económicas e onde se desfraldava a bandeira enganosa da liberdade, segundo a qual a oportunidade de viver bem era uma premissa a todos possível. Basta contudo lançar os olhos sobre as condições que permitiram o desenvolvimento do mundo capitalista para percebermos que nelas esteve sempre implícita a exploração do homem pelo homem, a fabricação da pobreza de muitos como condição do enriquecimento de alguns. Era assim em 1961, quando o muro foi construído em Berlim e o ocidente se atirava para a escalada do capitalismo, suportado politicamente por regimes democráticos capazes de criarem nos povos a ilusão de que podiam sempre lutar em liberdade pela riqueza, pelo conforto, por tudo o que parecia ser, segundo o modelo capitalista o melhor dos bens, e contudo sempre afastados dessa meta; e continua a ser assim, hoje em dia, quando o capitalismo emerge desenfreadamente e as franjas de pobreza e de miséria são cada vez mais palpáveis e cada vez mais atingem núcleos sociais, antes preservados. A pobreza alargou-se, portanto e foi o capitalismo que possibilitou semelhante alargamento, para se poder manter, enquanto tal. Por outro lado, a parte oriental da Europa, delimitada pelo Muro de Berlim, quis destacar-se dessa onda de materialismo e de desumanidade, estribada num ideal humanista cujos princípios visavam a supressão das classes sociais baseadas no poder económico, o desenvolvimento de condições sociais capazes de dotarem todos de modo equilibrado de condições básicas de sobrevivência digna e de, para além da busca de bens de consumo, criar uma sociedade propiciadora de valores humanos, culturais, artísticos em que o homem pudesse erguer a sua verdadeira face. «O livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos» e esta máxima do pensamento prático de Marx e Engels congrega em si, de modo simples, toda a articulação social e política necessária para erguer o verdadeiro mundo dos homens. Na sociedade capitalista o livre desenvolvimento de uns – a minoria – é condição para a  escravização dos outros – a maioria –  e esta máxima tem valor recíproco, pois a minoria só se ergue, economicamente, à custa da degradação da maioria. Foi assim no início da escalada capitalista, é assim no tempo que vivemos agora. E foi por isso que se ergueu o Muro de Berlim. Era necessário preservar um conjunto de grupos sociais capazes de porem de pé um mundo no contexto do qual as desigualdades económicas se esbatessem a tal ponto que o verdadeiro homem pudesse nascer, desenvolvendo, de facto, os valores intrinsecamente humanos que não são económicos, que não são materiais, que não se medem pelo Ter mas pelo Ser. À semelhança dos pais que protegem os seus filhos enquanto crianças nos limites de um espaço dentro do qual não lhes chegue a violência do mundo exterior, os perigos e as derrocadas do tempo adulto para o qual não estão preparados, enquanto crianças, também foi necessário erguer uma barreira para que a utopia, ainda impúbere, de uma sociedade justa e digna pudesse desenvolver-se arredada das tentações perigosas de um jogo de poder pernicioso e desumano. Aquele Muro, chamado da Vergonha pelos ocidentais, aquele Muro erguido no meio da cidade de Berlim, policiado e interditador da circulação livre foi o símbolo da protecção de um modelo de sociedade que, a desenvolver-se harmoniosamente, a estender-se gradualmente aos restantes países teria poder para pôr em prática a máxima de Marx e Engels citada antes. No momento em que os povos do Leste da Europa tivessem aderido à nova imagem do homem, dando de si testemunho ao resto do mundo, no momento em que a exploração do homem pelo homem, a abolição das classes, o respeito pela diferença e o estabelecimento da igualdade de direitos e de deveres prenunciasse uma nova etapa para o mundo humano, o muro poderia ir abaixo – à semelhança do que fazem os pais quando os filhos crescem e eles percebem que podem dá-los por inteiro à liberdade e à auto-determinação.

       Sendo assim, que foi que correu mal, para que o Muro de Berlim se transformasse num sinal de repressão e de violência, de atentados às vidas e aos direitos  daqueles que queria proteger? O que foi que não se cumpriu, do lado oriental da Europa, para que o descontentamento dos povos, aí confinados, almejasse pelas benesses da sociedade, aparentemente triunfal, do ocidente? O que foi que falhou no passar à prática da máxima de Marx e Engels, para que os povos da Europa de Leste rompessem a fronteira que o Muro fixava e tentassem fugir, arriscando a vida, para o outro lado do mundo?

       Uma vez mais não irei recorrer aos circunstancialismos históricos, datados e contextualizados, porque eles estão todos aí em manuais, documentários e filmes e darei, em vez disso, a resposta simples, nua e crua como são todas as respostas verdadeiras, dá-la-ei sem contemplações para que conste, para que possa ser alvo de reflexão – se acaso houver ainda disponibilidade para reflectir com autonomia.

      O homem corrompe a pureza dos ideais engendrados de boa fé, o homem ilude e ilude-se uma e muitas vezes, e julgando semear trigo deixa crescer o joio, o homem constrói o ninho e depois, esquecido que esse ninho é a sua morada, suja-o, quebra-o, torna-o gradualmente inabitável. Foi assim que a Europa de Leste abrigada pela fortaleza do Muro se foi degenerando, enquanto aparentemente o mundo ocidental desabrochava num esplendor feito de cintilações enganosas – mas nem por isso menos incandescentes. A corrupção ocidental estava disfarçada com as cores poderosas do consumismo alienante, mas encantador; a corrupção oriental tinha um sabor amargo, era cinzenta e apagada e os povos para além do muro pareciam a imagem pálida do mundo policromático divisado, a espaços, pelas frinchas, apesar de tudo abertas para o outro lado.

       Por isso, naquele dia 9 de Novembro de 1989, abrir o muro e derrubá-lo foi ocasião de festa; e os povos de Leste respiraram, por fim, o ar que lhes havia sido retirado durante décadas e sentiram que eram livres, sentiram que, doravante, os privilégios, as ousadias, os luxos e as aventuras do ocidente também lhes seriam  permitidos e que, desse modo, seriam cidadãos completos!

       Vinte anos passaram desde então. Poderemos afirmar, com verdade, que  derrubar o Muro de Berlim e atravessá-lo foi, efectivamente, a ocasião de encontro daqueles povos consigo mesmos? Poderemos afirmar, com verdade, que hoje os homens e mulheres da Europa de Leste, apresentados à sociedade de consumo e nela imbuídos de corpo e alma, são mais autenticamente humanos do que o foram à sombra ignominiosa da parede que derrubaram? Uma vez mais não responderei a semelhantes questões: as evidências andam por aí e também esses homens,essas mulheres e  essas crianças; encontramo-las um pouco por todo o lado – às evidências e aos homens – e basta querermos reflectir e ponderar para darmos a resposta, nem que seja apenas de nós para nós mesmos.

         Evidentemente que uma sociedade adulta e razoável não deveria necessitar de muros para fazer vingar os seus ideais. Evidentemente que um mundo, onde todos são semelhantes na sua comum humanidade, deveria escancarar todas as portas e deixar entrar e frutificar e crescer em pleno todos e cada um. Evidentemente que os muros, construídos objectiva e concretamente, enquanto barreiras físicas e os outros todos que, oriundos das nossas defesas psicológicas nos isolam dos outros homens deveriam ser derrubados, para que a concórdia e a autenticidade fossem possíveis.

       Não nos iludamos porém: caído o Muro de Berlim, outros se ergueram, provavelmente mais vexatórios ainda, provavelmente mais destituídos de sentido e as evidências históricas e documentais estão aí para atestar a sua existência; quanto aos muros psicológicos, às barreiras comunicacionais de homem para homem, às fortalezas erigidas por cada um na desconfiança perante o outro, nunca como hoje eles representaram tão agudamente  a evidência palpável dos muros que urge derrubar.

 

(Texto apresentado na palestra «A QUEDA DO MURO DE BERLIM: UM MURO OU VÁRIOS MUROS?» integrada numa actividade evocativa da efeméride, em 9 de Novembro de 2009, na escola Secundária de Marco de Canaveses)

 

 

 

 

QUANDO A FICÇÃO SE TRANSFORMA EM PODER (E VICE-VERSA)

Posted in Reflexões em mi bemol on 28/10/2009 by reginasardoeira

 

                                         

               

 

 

             QUANDO A FICÇÃO SE TRANSFORMA EM PODER (E VICE-VERSA)

 

Citações: 1. «O Antigo Testamento é formado em grande parte por uma compilação de histórias, muito à semelhança de um romance.»

             2.  «Pegar no Antigo Testamento para criticar a brutalidade dos hebreus ou de outros povos da antiguidade é o mesmo que criticar Dostoievsky por escrever sobre um assassinato premeditado ou criticar Anne Frank por descrever como a crueldade nazi afectou a família.»

            3.   «Quem quer que deseje conhecer até onde pode chegar a abominação e a crueldade e até que ponto Deus – ou o Destino – pode ser impiedoso bastar-lhe-á abrir o Antigo Testamento. Para quem nunca o fez, sugeriria que lessem o tratamento dado pelo Rei David a Urias, narrado no Segundo Livro de Samuel. Será difícil encontrar descrição mais poderosa da traição   e da brutalidade humanas.»

                          Saramago e a Insustentável Leveza da Ignorância, in Jornal Público, 27 de Outubro de 2009

 

 

        Lendo estes três extractos do texto publicado no Jornal Público do dia 27 de Outubro de 2009, da autoria de Richard Zimler, ocorrem-me, desde logo, algumas reflexões. Em primeiro lugar, segundo o autor, a Bíblia não passa de um romance, escrito não se sabe muito bem por quem, nem se sabe muito bem quando e, dadas as cogitações aqui expressas, não se sabe muito bem para quê, e logo todas as suas personagens, incluindo Deus, são fantasias urdidas por escritores muito imaginativos! Portanto, Deus não existe! Tantos milénios decorreram, tantos filósofos se descabelaram  para negar ou demonstrar a existência de Deus, e eis que esta súbita elevação da Bíblia à categoria de romance, ou poema, e logo ficção ou metáfora, anula o problema, enunciando que tudo o que existe no Antigo Testamento, enquanto relato, desde a criação do mundo até ao apocalipse, passando pelo dilúvio e pela destruição de Sodoma e Gomorra é comparável ao Crime e Castigo de Dostoievsky!

       No entanto, no decurso do terceiro extracto citado, o autor escreve: «Quem quer que deseje conhecer até onde pode chegar a abominação e a crueldade humanas e até que ponto Deus – ou o Destino – pode ser impiedoso, bastar-lhe-á abrir o Antigo Testamento.» Ao fazer esta afirmação, Richard Zimler nega o carácter fictício e ficcional do Antigo Testamento, pois é possível «conhecer» a crueldade e a abominação das personagens bíblicas e do seu Deus. É uma descrição de factos, afinal, ou uma ficção inventada por criadores iluminados? Do mesmo modo poderíamos dizer que o romance citado de Dostoievsky nos permite «conhecer» o carácter patológico e perverso de Rodion Raskolnikoff, considerando que a ficção, afinal, descreve uma história vivida, de facto, na Rússia do século XIX. Ou será que a palavra «conhecer» adquiriu um novo significado e já não é entender, reconhecer, saber, aprender com base em hipóteses provadas experimentalmente ou em argumentos seriamente ponderados e esgrimidos?

 

  Citação:     4.  «Tomar à letra estas histórias é simplesmente não entender o Antigo Testamento e ignorar por completo dois mil anos de tradição poética ocidental.»

 

       Dois mil anos de tradição poética ocidental – eis aquilo a que se resume o Antigo Testamento e os seus protagonistas, com o principal – Deus –  incluído ali, enquanto mito e logo ficção! E assim, nem Deus, nem os profetas, nem os heróis, nem os eleitos devem ser tomados à letra, pois não passam de personagens de um emaranhado de histórias que ninguém, no seu juízo perfeito, alguma vez deverá levar a sério! E no entanto essa prodigiosa ficção alimentou e alimenta uma série de cultos religiosos, essa ficção é chamada de sagrada e os seus autores, ainda que anónimos, de paladinos da inspiração divina – esse Deus que eles inventaram e  os inspirou num inaudito círculo vicioso. Entender o Antigo Testamento, segundo Zimler, é  reduzi-lo ou expandi-lo – tanto faz – à categoria de mito, recitando-o e cantando-o, quando é belo, ou detestando-o e afastando-o dos olhos, quando é vil.

        Apesar disso, séculos de literalização, do que afinal é metafórico, produziram e continuam produzindo  força de lei. Quem não se lembra de Giordano Bruno e de Galileu, condenados à fogueira, por heresia, apenas porque a Bíblia afirma a teoria geocêntrica, e qualquer um deles acreditou e provou cientificamente e expôs publicamente a teoria oposta? Se não me engano, tais condenações tiveram como base um episódio bíblico do Antigo Testamento – e logo uma metáfora – no contexto da qual Josué mandou parar o sol, para que o dia ganhasse as horas de que o seu exército necessitava para vencer o inimigo [Sol, detém-te sobre Gabaão; e tu, lua, sobre o Vale de Ajalão! (Josué. 10, 12.)].  Metáfora? Talvez; e contudo semelhante metáfora serviu para perseguir como hereges e queimar na fogueira os que, proclamando o movimento da terra em torno do sol, negaram essa verdade (afinal ficção). Sabemos que Galileu escapou da fogueira, porque lhe foi permitido retractar-se, sabemos que, com a idade de 70 anos, o cientista compareceu em tribunal perante inquisidores e alto clero e negou tudo o que afirmara e provara, não tendo sido, porém, dado à liberdade, pois cegou na prisão, obrigado a produzir diariamente textos permitidos pela igreja e trabalhando no escuro a ciência experimental, essa heresia afinal estribada numa imagem poética e num pregão fictício do eleito de Deus, Josué, o sucessor de Abraão! Dois mil anos de tradição poética? E contudo, essa alegada tradição poética teve peso de lei no século XVII, quando Bruno foi queimado vivo e Galileu se retractou humilhantemente perante o clero de Roma!

      O texto de Ricahrd Zimler é uma tragédia de superficialidade e falta de rigor, é um embuste e um insulto à inteligência de todos os que têm olhos e sabem ler.

 

 

                        Fonte das citações: http://ipsilon.publico.pt/

  

 

 

«O MANUAL DE MAUS COSTUMES»

Posted in Reflexões em mi bemol on 25/10/2009 by reginasardoeira

      

 

 

 

 

 «O MANUAL DE MAUS COSTUMES»

 

 

 

       Asneira é uma palavra derivada de asno e, pelo menos entre os humanos, um asno é um estúpido, um homem (ou mulher) que faz, diz ou escreve asneiras. Os asnos não falam, não escrevem e são usados como metáfora, sem dúvida cruel e injusta, para designar um ser humano de vistas curtas e inteligência diminuta: se fosse preciso, pediria desculpa aos asnos verdadeiros por utilizar aqui a palavra asneira, do nome deles derivada. Porém, felizmente para mim e para eles, não terei que levar a cabo um tal pedido: eu uso apenas a palavra, sem pensar nos animais que, contrariamente à etimologia, do seu nome advinda, não produzem asneira, e eles nada sabem destas artimanhas verbais dos homens, pelo que ficamos todos bem – eu e os asnos (esses mesmos, os de quatro patas, os de orelhas compridas).

       Ultimamente tenho ouvido muitas asneiras: e eis-me de novo a sair a terreiro para defender José Saramago. Não que ele precise seja de quem for para defendê-lo, mas porque a ignorância que grassa nas mentes é de tal modo grotesca que resolvi prestar alguns esclarecimentos a quem eles puderem ser, eventualmente, úteis.

       Ainda não tive oportunidade de pôr a mão no livro «Caim» pois toda a atoarda emitida pelos meios de comunicação social, toda a polémica, e consequente criação de  escândalo, produziram o efeito de varrer das livrarias a obra que foi esgotando em lotes sucessivos; quando decidi comprá-lo, não o encontrei em parte alguma. Porém, contrariamente a muitos daqueles que pregam contra as heresias, alegadamente proferidas nesse livro, eu conheço suficientemente a Bíblia para entender razoavelmente o sentido da expressão usada por Saramago ao referir-se ao livro sagrado como «um manual de maus costumes».

       Obviamente que Saramago está a levar em conta o Antigo Testamento, esse em que um deus cruel e vingador pontifica como protagonista e desencadeador de inúmeras carnificinas, injustiças, calamidades, destruições, ódios, vinganças e por aí adiante. Um  deus que, por inércia e ócio, se diverte a criar um mundo e nele dois seres privilegiados: o Homem e a Mulher. Instala-os no Jardim do Éden, fá-los senhores absolutos de um local de delícias mas com alguns limites, dentro do seu superior controle. Deixa-os fazer tudo, permite-lhes o prazer, a indolência, a gula, apresenta-lhes frutos prodigiosos e sumarentos das diversas árvores do Jardim: mas aponta-lhes uma, talvez a mais frondosa e colorida, decerto a que, no centro do Paraíso, prometia maiores delícias gustativas, e ordena: «Daquela não podereis comer, porque no dia em que o fizerdes expulsar-vos-ei do Paraíso!» Porém, ela estava lá, essa árvore magnífica, e o primeiro par de humanos passava por ali nas suas deambulações e não conseguia entender por que razão lhes era vedado tocar naquela, precisamente naquela, e só naquela. Que quereria Deus dizer com «expulso-vos do Paraíso»? E porque razão comer um fruto de uma árvore, no meio de tantos frutos de tantas árvores poderia ser motivo para «expulsão»? E mais: expulsão, para onde, se eles nada conheciam que não fosse aquele jardim, para eles concebido?

       Ao mesmo tempo que deus criou a proibição, inventou, de igual modo, a tentação e a dúvida, inventou o engenho nas inteligências primevas e amodorradas dos primeiros humanos, que se sentiram inevitavelmente atraídos para aquilo que lhes havia sido proibido, querendo perceber a razão de semelhante restrição e, quem sabe?, entender também o sentido do termo expulsão e as consequências de semelhante castigo. Logo, deus criou, em simultâneo, a origem do pecado e o próprio pecado pois construiu Adão e Eva com uma perplexidade  inicial, com um dilema e com um desafio. Deu-lhes tudo, à excepção do livre-arbítrio, concedeu-lhes o alimento do corpo em profusão, mas não lhes alimentou, do mesmo modo, a imaginação e a inteligência. E assim, inevitavelmente, os dois habitantes do Éden comem da árvore proibida! Eles «tinham» que comer e deus sabia disso. Eles «tinham» que vencer o desafio da proibição, ultrapassando-o, e deus também o sabia. Logo, deus criou Adão e Eva com essa capacidade inicial para não resistir à beleza de um fruto interdito pelo criador e sabia que estava a criá-los exactamente assim.

       Que deus é este que gera a perfeição, mas lhe coloca, de imediato, limites e entraves? Que deus é este que dá tudo às suas criaturas – aquelas que criou à sua imagem e semelhança – e lhes põe permanentemente debaixo do olhar e de todos os sentidos o obstáculo à mesma perfeição?  Que deus é este que coloca a espada da cisão e o fantasma da expulsão humilhante à frente dos seres criados como seu reflexo terreno?

       Adão e Eva comem o fruto interditado e percebem uma quantidade de coisas que a cegueira amodorrada do jardim das delícias lhes tinha impedido de ver. E deus, o pai e criador, não está com meias medidas: expulsa-os e condena-os a uma existência dura e ingrata, envia-os para terrenos inóspitos que precisarão de cavar com as próprias mãos, de onde deverão fazer emergir o alimento, antes oferecido graciosamente, e obriga-os a multiplicarem-se como os outros seres da natureza na aflição e na dor.

       Manual de maus costumes? É claro! Um pai que proíbe, sem explicar porque proíbe, um pai que ameaça castigar o prevaricador, sem dar qualquer indício do sentido de semelhante prevaricação, um pai que castiga e condena esses dois primeiros pecadores, e todos os outros que deles serão gerados, a um nascimento contaminado por uma falta absurda, insensata, ridícula. Imitaríamos nós um tal pai? Seríamos capazes de educar deste modo os filhos por nós concebidos?

       Depois, Adão e Eva, na labuta terrena, engendram dois filhos: Caim e Abel. E deus, vigilante, observa que a índole de um é diferente da índole do outro e, em vez de acarinhar o mais fraco, em vez de se intrometer positivamente na construção do carácter de Caim, favorece, com a sua predilecção, Abel, o melhor dos dois, gerando a inveja, o ódio, o ímpeto assassino no desfavorecido, no rejeitado. Ambos trabalham e ambos oferecem a deus o produto das suas respectivas tarefas, cereais e cordeiros, e enquanto o pai e criador, recebe com agrado as oferendas de um, rejeita com desprezo as dádivas do outro. Que admira que a raiva recrudescente tenha levado Caim a matar Abel e a suprimir desse modo o privilegiado, seu rival, sua sombra, instrumento do seu castigo e da sua desgraça aos olhos de deus? Afinal, quem matou Abel não foi Caim, foi deus, esse que discriminou e enraiveceu e enregelou um irmão perante o outro, esse que a partir dessa hora abriu caminho para todas as guerras fratricidas perpetradas pelos milénios além e que, apesar dos esforços de muitos homens, continuam e continuarão acesas no lume sanguinário do sangue irado de Caim.

       Manual de maus costumes? É claro! Que pai humano rejeita e abomina o seu filho, mesmo quando ele erra, que pai humano não se dispõe a acarinhar o filho mais fraco ou rebelde para o colocar no bom caminho? Que pai humano estabelece diferenças entre os seus filhos e rejeita ostensivamente as oferendas do menos bom que, apesar de ser menos bom, ainda assim quer agradar ao progenitor?

       E um dia, o criador do mundo e dos seus primeiros habitantes humanos, obrigados a dar à luz em partos sucessivos, obrigados a descender de Caim, o ignominiado, o fugitivo, obrigados a albergar em si a semente do mal, neles deposta pelo próprio criador, enjoa-se da sua obra, fica repugnado com a miséria das suas criaturas reles, reles, porque ele assim as quis, reles porque reles era também o mesmo criador. Não pensa redimir o seu próprio erro e emendar, num gesto omnipotente, a mão inicial, salvando as criaturas perdidas pela sua própria incapacidade de educar a criatura. Torna-se assassino declarado e elimina toda a espécie num dilúvio universal, de onde não pretende deixar escapar a sombra de um homem; mas faz pior ainda: elege, de entre todos, um casal e a sua família, os únicos que no seio das multidões perversas e pervertidas lhe merecera complacência e, nesse gesto, discrimina, de novo, afunda nas águas revoltas homens, mulheres e crianças e apenas salva aquele punhado de seres, com  a promessa de que, mais tarde, eles seriam a condição de um mundo melhor: esse que ele, enquanto deus, não foi capaz de conceber e executar.

       Manual de maus costumes? Na história dos homens, só os bárbaros e os loucos, os tiranos e os ditadores promoveram, no mundo tal como o conhecemos hoje, genocídios aproximados a este! Só os degenerados que, apesar do sacrifício da geração de Noé continuaram a ser concebidos e tolerados por deus criador, levam a cabo, em pequena escala, um procedimento de tal modo cruel e implacável!

       E a saga bíblica prossegue e encontramos um certo Abraão, dilecto de Deus, um homem poderoso e chefe de outros homens numa tribo de pastores, um homem eleito e contudo incapaz de ter um filho apesar de muitos pedidos a esse deus clemente e piedoso. E eis que em extrema velhice deus permite que Sara, a mulher estéril de Abraão, conceba e dê à luz um filho, Isaac, o primogénito, o descendente. Tudo parecia estar no devido lugar, até ao momento em que deus fala a Abraão e lhe exige que suba à montanha e  uma vez ali, no silêncio absoluto e sem testemunhas lho ofereça em sacrifício! E Abraão não hesita, temente a deus, servil e incauto, e conduz Isaac inocente até ao sítio indicado por deus e, uma vez ali  amarra-o, levanta a faca para degolá-lo; até que deus proclama: «Provaste a tua fé, por isso desamarra Isaac e sacrifica-me aquele cordeiro!»

       Manual de maus costumes? Que Deus é este que dá um filho a um pai e o faz amá-lo e depois lho arranca na satisfação mesquinha de um simples capricho – «quero ver se valho alguma coisa para este homem, quero ver se ele tem fé em mim, quero testar de novo o meu poder!» Qual de nós obedeceria a semelhante Deus e se disporia a matar o próprio filho para satisfazer um capricho, por mais divino que fosse ou aparentasse ser? Qual de nós não morreria de horror perante a necessidade de assistir à morte terrível do sangue do nosso sangue, por nós mesmos executada? Qual de nós seria capaz de regressar para casa de boa consciência, mesmo depois do cancelamento do acto executório, e olhar nos olhos o filho prestes  a ser executado e a mãe, companheira de vida e amante desse único filho gerado apesar da própria esterilidade?

       Poderia prosseguir durante páginas e páginas mas não me parece que valha a pena. Estes exemplos chegam para definir o carácter desse nosso alegado criador, desse tirano caprichoso e incompetente, incapaz de fazer seja o que for de bom, e apesar disso vingando-se nas suas vítimas da própria imbecilidade.

       Muito mais tarde, aparentemente, deus fez uma boa acção: inventou um filho mestiço – semi humano, semi divino – deu-lhe qualidades positivas e ordenou-lhe que salvasse os homens, pô-lo em condições de corrigir a sua maldade e incompetência criadora. Esse homem enigmático e de origem misteriosa, Jesus, inverte o sentido da implacabilidade criminosa do pai, anuncia o perdão, o amor, a benevolência e a tolerância. Opõe ao gume do machado, o gesto da bondade, ao grito de furor, a serenidade das palavras, à saga da destruição, a quietude de um mundo feito na concórdia. Todos sabemos que já era tarde demais, todos vemos que o hebreu Jesus passou pela terra sem que um só o entendesse cabalmente, a ponto de tornar universal a verdadeira boa nova. E de novo, o cristianismo emergente das palavras e dos actos cifrados desse filho de deus e do homem, miscigenado em corrupção divina e inocência humana, gerou crimes, ódio, guerra!

       Manual de maus costumes? Que deus é este que envia um filho, através de um embuste humano – uma virgem que procria – para a seguir o condenar à morte ignominiosa dos ladrões e dos assassinos? Que deus é este que não é suficientemente eficaz enquanto pai, desta vez directo, de gerar um filho com a competência absoluta e efectiva de redimir o aleijão, criado e consentido, que dá pelos nomes de mundo e de humanidade?

       Vá lá, vão ler a Bíblia, esse livro que tanto mal tem feito aos homens, geração após geração, leiam-no com sentido crítico, analisem-no com inteligência, não dêem ouvidos aos pregadores que inventaram, há um ou dois séculos, que, afinal, a Bíblia é apenas literatura, um texto magnífico engendrado por pessoas inspiradas e que tudo o que ali se consigna significa o contrário do que está expresso! Analisem aquelas histórias aterradoras e maquiavélicas como se elas fossem mesmo a história da nossa génese, e não como metáforas de um deus, afinal complacente e justo, mas desfigurado nas linhas alegóricas da mistificação literária. Talvez a seguir possam concordar com Saramago e admitir que a Bíblia é, de facto, um manual de maus costumes, um relato de perversões e maldades, de crimes e genocídios e que tudo isso tem a marca de um suposto criador, tido como omnipotente e infinitamente bom, mas afinal fraco, caprichoso e absurdamente maléfico.

 

 

Nota de rodapé: Este texto é, sem dúvida, um conjunto de erros para a plêiade de hermeneutas e de exegetas da Bíblia; se eu quisesse fazia heremenêutica e exegese como eles: não faço e provavelmente nunca farei – falta-me tempo, porque  prefiro ocupar-me de actos criativos, em vez de remexer constantemente no antigo, no já feito. Portanto, o texto fica, para valer exactamente o que vale e nada mais!

 

O Adjectivo

Posted in Reflexões em mi bemol on 29/09/2009 by reginasardoeira
    
 
René Magritte, O Mágico
 
 
 
 
O ADJECTIVO
 
 
 
 
    O Adjectivo. O Nome que se junta a outro. Aquele género de palavras, transversais a todas as línguas, úteis para atribuir qualidades a outras permitindo-lhes uma clarificação superior.
    Suponhamos que no nosso texto íamos falar de uma MESA. Como resulta evidente, ao lermos a palavra «mesa», somos, de imediato, invadidos mentalmente pelo respectivo conceito que, ao nível ideal, corresponde à imagem de uma mesa concreta, uma, entre as muitas que se nos apresentam à observação quotidiana, a qual pode ou não equivaler à mesa que, enquanto autores do texto, pretendíamos tornar explícita. E então, caso essa mesa específica seja relevante para a compreensão da trama textual, poderíamos recorrer a adjectivos, para retirar da mente do leitor o seu próprio modelo ideal e fazê-lo aderir ao que pretendemos que seja o nosso. E então diríamos, por exemplo, «uma mesa rectangular». Ao dizê-lo, obviamente, todos os outros formatos possíveis seriam de imediato afastados do pensamento do leitor que se fixaria nas mesas rectangulares suas conhecidas elegendo, muito provavelmente, aquela que, no seu entendimento de leitor, mais se ajustasse ao contexto.
       No entanto, continuemos a conjecturar. Dizer «uma mesa rectangular» ainda não nos enche as medidas, enquanto escreventes, pelo que necessitaremos de continuar a acrescentar adjectivos; e poderia nascer o seguinte: «uma mesa rectangular imponente». De acordo com a concepção de imponência que se aloja na mente do leitor, a mesa rectangular surgirá mais ou menos pesada, mais ou menos comprida, mais ou menos trabalhada, feita de um material mais ou menos nobre, mais ou menos gasta pelo tempo. Portanto, carece ainda de objectividade. E o nosso escrevente, obcecado pela sua mesa específica, desejando ardentemente que o leitor reconheça exactamente a mesa de que ele quer falar, terá que adjectivar de novo, escrevendo, por exemplo assim: «uma mesa rectangular imponente, polida…» . Novas imagens ocorrerão ao leitor perante este terceiro adjectivo. Polido/a sugere, instantaneamente, brilho e, portanto, um esmero no tratamento do móvel; mas também pode a mesa estar polida pelo uso, o que empurra a imaginação para uma mesa rectangular, imponente e polida porque  foi usada por gerações que lhe outorgaram essa qualidade. E então, para não haver dúvidas, já que o nosso escrevente é rigoroso e a sua mesa tem que impor-se, como ele deseja, ao leitor, eis que novo adjectivo emerge: «uma mesa rectangular, imponente, polida, antiga…» . Num ápice, o leitor afasta a ideia do polimento obtido na fábrica de móveis e visualiza uma mesa de um solar ou palácio, uma mesa extraordinária de qualidades supremas…mas, viciado que começa a ficar na adjectivação do escrevente, já não sabe muito bem que imagem atribuir ao móvel! Por outro lado, o autor continua a desejar que o seu leitor tenha a noção precisa da sua mesa e, dado que os quatro adjectivos ainda não a exprimem com inteira eficácia, procura outro e a frase prossegue o seu caminho deste modo: «uma mesa rectangular, imponente, polida, antiga, adornada…» e logo a mesa se apresenta ao estilo barroco ou rococó ou século XVII ou renascentista ou rústico, adornada com biblelots e jarrões, ou…enfim, as possibilidades tornam-se avassaladoras, de tal modo que o leitor, esgotado, já não consegue imaginar a mesa que o escrevente se esforçou por tornar concreta, adjectivando-a cinco vezes! Se o escrevente continuar neste esforço titânico de caracterizar exaustivamente o objecto em causa, sobrepondo adjectivos retirará gradualmente toda a concrecção à mesa que se multiplicará e desmultiplicará à medida que a adjectivação progredir.
       Como fazer então para caracterizar a MESA, à volta da qual se desenrolará o texto que começámos a produzir e que, por essa razão, necessita aparecer com absoluta objectividade?
        Os métodos existem e cada escrevente deverá escolher o seu, de acordo com o estilo narrativo em questão. Poderá referir a MESA assim mesmo, despojada de qualquer adjectivo, compondo uma frase deste teor: «No centro do salão, iluminado por quatro janelas, a mesa refulgia, revelando, na sua textura e nos arabescos que a esculpiam, os segredos de várias gerações.» Nenhum adjectivo, reparem, e contudo aqui está «a mesa imponente, polida, antiga e adornada»! Falta um, bem sei, a nossa mesa é rectangular e, da frase aqui produzida, não emerge a sua rectangularidade. Porém, o escrevente talentoso querendo impor essa qualidade à mesa de que está a falar poderá continuar o texto do seguinte modo: «Eram vinte os convidados para o jantar daquela noite e o anfitrião ainda não havia decidido a qual deles daria o privilégio de ocupar o extremo oposto ao que lhe pertencia por direito, sendo que os restantes dezanove já se distribuíam harmoniosamente na mesa pelos outros dois lados que a compunham.» De novo, nenhuma adjectivação pende sobre a mesa e contudo não temos dúvidas nenhuma que estamos perante «uma mesa rectangular, imponente, polida, antiga e adornada!» E entretanto o leitor  começou a antever o cenário, a prever o acontecimento e, sem mesmo dar conta disso sabe a dimensão e as características da mesa onde vinte convivas irão iniciar um repasto.
     Adjectivos? São, sem qualquer dúvida, palavras com uma função imprescindível em muitas situações, podem mesmo usar-se enquanto figura de estilo (nomeadamente em poesia) e tornar belo um texto por via dela. Porém, todo o abuso é maléfico e conduz exactamente aos resultados opostos do que qualquer escritor pretende: transforma a sua linguagem num amontoado de palavras inexpressivas de tão profusamente qualificadas, cansa o leitor que se perde na barafunda das sucessivas caracterizações, dispersa e desqualifica, em lugar de precisar e tornar concisa, a linguagem textual.
 
 

O Dia da Reflexão

Posted in Reflexões em mi bemol on 26/09/2009 by reginasardoeira
 
 
 
 
O DIA DA REFLEXÃO
 
 
 
 
      Exactamente porque hoje é dia de reflexão antes do acto eleitoral e tenho o hábito de reflectir por escrito, eis que decido fazê-lo aqui, em partilha. Julgo que não serei punida por semellhante disposição.
      Não acredito na democracia. Já no século V a.C., tempo de Sócrates e de Platão, o regime, inventado e posto em prática pelos gregos, apresentava todos os sinais da decadência, a saber: corrupção (os sofistas acorriam à cidade-estado de Atenas porque ali podiam, à vontade, vender sabedoria, espalhar sofismas, formar demagogos e enriquecer por essa via), extrema movimentação nos tribunais (dado que era permitido discursar na ágora e qualquer um podia dizer o que bem entendesse, ofendendo outros com frequência, os processos afluíam; e de novo os sofistas – esses protoadvogados – apareciam em cena para defender o acusado); descontentamento e ânsia pelo tirano que organizasse a confusão de palradores e escrevinhadores de todos os géneros; enriquecimento desmesurado de uns em detrimento de outros; defesa do esclavagismo como condição inalienável do florescimento dos cidadãos privilegiados a todos os níveis e muito mais, que não julgo necessário expor, na íntegra. Esses dois grandes símbolos da filosofia – Sócrates e Platão ( um, implicitamente, pois não escreveu qualquer livro, muito embora tenha sido executado pela democracia, por via da sua acção libertadora junto dos espíritos juvenis, outro, explicitamente, pois produziu obras plenas de actualidade onde apresenta as grandes utopias da sociedade perfeita, por oposição à democrática e a outras estruturas políticas) não aderiram ao regime, criticaram-no e detestaram-no pelos efeitos nefastos que a elevação brusca do povo à categoria de governo, sem a necessária catarse cultural,  gera necessariamente. E, de facto, a decadência atingiu essa grande potência cientítica, artística, poética, filosófica, linguística, esse universo onde o ocidente bebeu tudo o que ainda hoje é digno de apreço e a Grécia poderosa da antiguidade nunca mais se levantou da queda. Entretanto, a modenidade recuperou o regime democrático, se bem que o tenha feito pela via burguesa, esse povo ressentido, essa massa humana chegada à riqueza e todavia privada de poder político, esses sanguinários da Revolução Francesa capazes de cortarem as cabeças dos aristocratas, sem julgamento de qualquer espécie, apenas porque desejavam ocupar os seus postos de governação. Napoleão, o pretenso libertador da França, o herói da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, bastiões da democracia, não resistiu ao orgulho, não teve a capacidade de respeitar a liberdade de que era o mensageiro e pela qual se tornou o ídolo da Europa e fez-se…imperador!
       O que hoje temos como regime político, tido como fiável, generoso, capaz de engendrar cidadãos livres e aptos a decidir quem deve ter o poder para nos governar a todos é a democracia, ainda! Não conseguimos inventar nenhum outro sistema capaz de reabilitar a Grécia de Sócrates e de Platão ou de repor os ideais humanitários da Revolução Francesa. Continuamos apegados a um pretenso governo do povo e a assistir, com uma espécie de indiferença ofendida ou de sarcasmo estulto, a um espectáculo lamentável de jogo de cadeiras em que, cegos e tontos, meia dúzia de homens/mulheres, com idade mais ou menos avançada, se atropela numa correria ridícula a ver quem, no final, empurrando os outros, difamando-os, passando-lhes rasteiras, e por aí adiante, ocupa o almejado trono.   
        O povo?! Esse não entende absolutamente nada do que está a passar-se com ele – exactamente, com ele – o povo assiste a esta corrida ridícula com resignação: ou nem sequer assiste, incapaz do sentido crítico, demitido da sua função suprema de intervenção na vida pública, preferindo fechar os olhos e tapar os ouvidos e ir, depois, no dia designado para tal, como um rebanho de carneiros humanos, pôr a cruz no boletim de voto e permitir que o jogo de cadeiras tenha, por fim, um desenlace.
        Quando utilizo a palavra «povo» estou a designar «toda a gente». A antiga divisão tripartida das classes sociais -clero, nobreza e povo – hoje não se aplica, e logo todos somos povo, queiramos ou não admiti-lo, tentemos ou não  definir classes e alimentar preconceitos elitistas. Quando nos deslocamos a caminho da mesa de voto é como povo que o fazemos e não como intelectuais, ou polícias, ou arquitectos, ou engenheiros ou escritores ou vagabundos ou funcionários públicos…porque, no plano estrito da formação política e na consciência avalizada do procedimento correcto e certeiro no momento de traçar  a cruz no boletim de voto, pouco ou nada distingue um intelectual de um analfabeto! Existem, efectivamente, os homens cultos e letrados e os homens incultos e iletrados; existem os trabalhadores manuais e os licenciados ou mestres ou doutores; porém,  quer uns quer outros revelam, à saciedade, serem absolutamente idênticos, quando executam esse gesto, não só pelas maiorias que engendram ou pelas percentagens que desencadeiam, mas também pelas específicas e secretas razões de cada um: secretas, mas fáceis de adivinhar, uma vez conhecido o sujeito votante. Mesmo aqueles que conseguem juntar letras e aderir ao sentido das palavras, mesmo aqueles que vão mais longe e lêem livros ou até os que, não só os lêem, mas também os escrevem, os que fazem mestrados e doutoramentos e se consideram muito importantes, por isso, quando vão eleger os governantes, no sentido lato da palavra governante, procedem como analfabetos funcionais!
       Como estou tão certa disto que afirmo?
       Tenho observado, com atenção e cuidado, as personalidades, as perspectivas, a cultura, a capacidade dialéctica, a eficácia prática dos que, amanhã mesmo, serão avaliados na cerimónia eleitoral. Tenho também analisado os resultados e as percentagens dos actos eleitorais próximos e passados. Tenho levado em conta as actuações de ministros e primeiro-ministros, presidentes da república ou das câmaras ou das juntas. Tenho avaliado o progresso do país, liderado por toda essa gente, ao longo destes anos em que somos governados democraticamente. E sei que o povo nunca fez e vai continuar a não fazer, amanhã mesmo, a escolha acertada! Quer dê a liderança governativa a um ou  a outro – pois foi numa esquizofrenia política que caiu a democracia portuguesa – o povo vai escolher mal; quer eleve ou abaixe as percentagens relativas dos partidos menores, presentes no jogo, o povo vai cometer vários e irreversíveis  erros.
       Esta reflexão não é pessimista se por pessimismo entendermos ver o pior, onde, certamente, estará o melhor; esta reflexão é o espelho da realidade e qualquer um que decida acordar neste preciso instante – por exemplo, lendo o texto aqui presente e procurando perceber o que lhe é subjacente – mesmo que não seja um génio ou sendo-o, saberá compreender e (quem sabe?) encontrar o modo certo de agir amanhã, dia de eleger o parlamento português e, consequentemente, determinar os futuros governantes do país.

As Vírgulas

Posted in Reflexões em mi bemol on 17/09/2009 by reginasardoeira

As vírgulas

 

        A vírgula é um sinal de pontuação, tem este aspecto  ,  e é de importância fundamental no discurso escrito. Não necessitamos de vírgulas quando falamos pois, se tivermos prática, se não formos gagos, a pausa ou a denotação que correspondem à vírgula, no discurso escrito, introduzem-se espontaneamente na modulação do diálogo oral. Mas, quando escrevemos, seja qual for o género, literário ou não, com que nos expressemos, se esquecermos esse pequeno sinal ou se o ignorarmos deliberadamente, o resultado pode bem ser catastrófico.

          Admito que não é fácil utilizar adequadamente a vírgula e, tanto podemos pecar por excesso, como por defeito; logo, as regras do uso da vírgula constituem uma espécie de tratado científico que urge conhecer. E, pelas mesmas razões, urge utilizá-las adequadamente.

           Escrever é, simultaneamente, uma técnica, uma ciência e uma arte. Enquanto técnica, aprende-se nos primeiros anos de escola e visa, não só a correcção vocabular, mas também a necessidade de ser da utilização dos diversos sinais de pontuação, entre os quais destacamos a vírgula. Enquanto ciência, implica o conhecimento teórico dessa necessidade, a razão de ser das regras da pontuação e, em suma, a ligação intrínseca que, necessariamente, existe entre a correcção do discurso escrito e a interiorização das regras. Enquanto arte, a escrita possibilita duas atitudes e práticas antagónicas: ou o escritor dá um uso peculiar à pontuação, imprimindo-lhe significações não previstas nos manuais ou abdica dela, através de um uso específico e criativo do discurso escrito. Possibilita, é certo, mas não obriga: pode ser-se escritor, e logo artista, e continuar a utilizar as regras da pontuação, sem que essa fidelidade prejudique o vigor criativo.

           Presume-se que quem escreve para os outros, seja uma carta, um relatório, um livro, pretende ser compreendido, mais, pretende que o seu texto, de menor ou de maior dimensão, soe bem, intimamente, a quem lê. Em geral, a leitura é feita em silêncio, e a mente do leitor tem que processar o sentido e captar a harmonia da peça escrita, chegando ao ponto de absorver, objectiva e subjectivamente, o conteúdo expresso no texto produzido. Ora, os sinais de pontuação, dos quais destaco, aqui, a vírgula, são imprescindíveis para essa absorção. Por outro lado, o leitor experiente, colocado perante um texto em que as vírgulas não estão onde deveriam estar, vai sentir a desarmonia do discurso e cedo se desinteressará.

          Acontece que, e negando o que tenho vindo a afirmar, é perfeitamente possível escrever, por exemplo, um livro, de onde foram erradicadas todas as vírgulas e, apesar disso, o texto resultar, não só absolutamente correcto, do ponto de vista técnico e científico, mas ainda de proporcionar uma leitura cativante e expressiva. Como assim?

          Pois bem: há uma enorme diversidade de narradores implícitos no mesmo escritor, narradores que emergem no exacto momento em que a narrativa se constrói. Cada um desses narradores engendra o discurso escrito, antes ou à medida que vai escrevendo – não saberia dizer, com precisão, se o texto já está mentalmente produzido e o acto da escrita é uma mera reprodução ou transcrição do produto mental ou se, perante a folha e no acto de traçar a primeira frase, as outras se lhe associam de modo coeso – e é esse específico narrador que vive no escritor, repentinamente acossado por um estilo narrativo decorrente da história que lhe aconteceu ou lhe vai acontecendo, que decide se o texto tem ou não tem vírgulas. Posso garantir que aquela espécie de homúnculos que habitam o escritor e o fazem produzir textos sabe se necessita ou não de utilizar a vírgula, como sinal de pontuação, ou se, pelo contrário, não poderá prescindir dela. E, um texto muito específico, pode aguentar-se com toda a credibilidade sem um único desses pequenos sinais, enquanto que outro, também ele específico, não resistirá ao seu próprio estilo se abdicar, uma vez que seja, do precioso sinal de pontuação.

          Uma coisa é, no entanto absolutamente certa: para aceder a escrever sem vírgulas é imprescindível possuir o conhecimento exacto das regras que lhe presidem e realizar a prática da sua utilização, durante o tempo que for necessário, para que, um certo dia, possa escrever, abolindo-as. Explicar-me-ei melhor recorrendo a um exemplo.

          Observem-se estes dois quadros de Pablo Picasso:

                    

                          Picasso, Pablo, O velho tocador de guitarra ( 1903)                                                  Picasso, Pablo, Mulher tocando Bandolim (1909)

        O primeiro (à esquerda) denuncia, à saciedade, a mestria do artista na técnica convencional da pintura, o que prova que Picasso sabia pintar de acordo com as regras; o segundo (à direita) rompe em absoluto com a norma e o resultado é um modo inovador, e logo anti-convencional, que, como é do conhecimento geral, ao menos entre a classe culta, guindou o pintor à categoria de génio universal. Agora vejamos: tal fenómeno seria possível a Pablo Picasso caso ele não se tivesse iniciado como pintor clássico e houvesse, durante anos, treinado a técnica, segundo as regras? E mais: atingiria a celebridade que veio a conhecer, caso, na sua história de artista, houvesse utilizado apenas o estilo que o segundo quadro apresenta? E mais ainda: poderia fazê-lo, daria esse direito a ele mesmo se não possuísse em si a mestria do desenho e da pintura na sua correcção convencional? A resposta a todas estas perguntas é, evidentemente, não, pois o salto para um modo de expressão, único e pessoal, dá-se, apenas, depois de muito treino de escola.

          De igual modo, o escritor só pode autorizar um dos seus narradores a quebrar as regras – por exemplo, abolindo as vírgulas – quando aprendeu a usá-las e as manobra com toda a naturalidade. Aí sim saberá, sem sombra de dúvida, como e quando escrever sem vírgulas é o estilo oportuno e também quando utilizá-las é uma obrigação devida à intrínseca natureza do texto.

         E então, concluirei do seguinte modo.

         Se alguém é/quer vir a ser, de facto, um escritor verdadeiro e verídico, e consegue dar-se conta de que a pontuação lhe é essencial, enquanto técnica, deve absolutamente colocá-la nos sítios adequados; caso não os conheça ( aos sítios) deverá consultar os manuais respectivos ou solicitar a ajuda de um especialista. Depois de treinar, intensivamente e durante anos, a técnica e a ciência da escrita, poderá evoluir para dimensões artísticas, onde tomará contacto com os narradores que vivem no seu íntimo e saberão definir, à partida, o estilo peculiar de cada texto a produzir objectivamente. Se insistir em começar pelo Picasso da direita, antes de assimilar os métodos do Picasso da esquerda, poderá ser muitas coisas mas nunca será, de facto, capaz de produzir a não ser aberrações «literárias».

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A RESPOSTA

Posted in Reflexões em mi bemol on 06/09/2009 by reginasardoeira
 
 
 
Salvador Dalí, Adolescence
 
 
 
 
 
A RESPOSTA
 
            Subia a Serra de Espinhaço de Cão, vinda de Aljezur, quando, por entre os pinheiros, pelo lado direito da estrada, rumo ao poente, entrevi, ao fundo, um cenário onírico. Estávamos num fim de tarde de Verão, o sol brilhava no céu límpido, e o mar, ao longe, cintilava, daquele azul opalino e transparente, (quase céu, quase fantasmagoria) e, como que depositada sobre a superfície líquida, uma cidade parecia emergir de uma almofada de areia, uma cidade com torres – quais castelos, vistos assim na lonjura translúcida da tarde – torres de outrora, parecia-me, depositadas por gigantes na textura oceânica. A ilusão persistiu durante algum tempo, a ilusão de que a estrada serrana decobrira uma quimera, pois logo soube que a cidade assim desvendada não podia ser outra a não ser… Portimão! Quem diria que a cidade algarvia, com os seus prédios incaracterísticos, feitos para o lazer fútil e para o consumismo demolidor, poderia ter semelhante dimensão mítica, vista, deste modo, por entre os pinheiros de uma serra? Iludida pelo esplendor fantasmagórico deixei a serra e desci os escassos quilómetros que me separavam da deusa emergente, qual Vénus explodindo no oceano ignoto. À medida que me aproximava, o encanto dissolvia-se em torrentes de carros fumegantes pelas avenidas, formigando pelos túneis, alastrando por múltiplas rotundas. O encanto diluía-se na proliferação das catedrais do consumo, nos Mac Donald’s e Hipermercados de todos os géneros, nos restaurantes e bares, nos hotéis…e o bafo africano transformou a temperatura amena do Atlântico de Aljezur em miasmas múltiplos e heteróclitos de muitas respirações. Desiludida com o subterfúgio, descrente da transfiguração de uma promessa de sonho num cenário cosmopolita de capital urbana, pensei que, ao menos, o mar estava lá, tinha que estar, para além do muro de betão das construções já despojadas da sua aura de milagre. O mar e a praia, as rochas de cor ferruginosa erguidas sobre o azul profundo, essas não teriam sido absolutamente corrompidas pela invasão catastrófica do lazer dos homens. Abafada e em angústia, dei voltas e voltas procurando um lugar de onde ver o prodígio marítimo, um pequeno buraco onde depositar a máquina e sair em busca de outras visões. No entanto, na cidade imensa e resfolegante, não havia um sítio , uma brecha, um pequeno miradouro para espreitar a vastidão! Saturada de ruídos de escapes, da visão  alucinada da gente em busca dos prazeres orgiásticos, não vendo do mar senão uma pequena tira esbranquiçada subtraída à omnipotência das torres de habitação, voltei costas à cidade e regressei, já ao crepúsculo, e depois, pela noite estreme à serra do Espinhaço de Cão e a Aljezur. Não voltei a contemplar a cidade fantástica depositada no oceano, inocente e plena na distância, perdi de todo a visão mágica e perdi-a duplamente: primeiro, porque me aproximei demais e  a realidade estraçalhou o sonho, depois, porque a noite na serra não me permitiu rever a fantasia.
              São assim os homens. A beleza – esse conceito humano que não existe, enquanto objecto, mas apenas como ideia acrescentada às coisas – a beleza está lá, pode ver-se, fruir-se, captar-se na orla da pupila ou pela objectiva das máquinas. Mas, quando queremos tocá-la de perto entendemos que uma mistura cruel de prosaísmo e vulgaridade enfeitou de negritude o que era  etéreo!  Sei bem que no episódio narrado a culpa foi minha: quis indevidamente devorar aquela beleza, penetrar no sortilégio da cidade encantada depositada numa paleta azul e ouro, quis desvendar o segredo, em cima inviolado, e apressei-me a descer a montanha em busca da sua solução, quis possuir a beleza: e logo que o intentei, ela escapou-se-me entre os dedos. A Beleza é sempre o Longínquo, longínquo da posse, longínquo da captação, longínquo da necessidade de aproximação. Se tivesse deixado estar o sortilégio assim, à distância, recordaria Portimão como uma Vénus recém saída da concha parturejante, imaginaria, doravante, que a cidade algarvia com as suas torres e o seu bulício cosmopolitas se havia transmutado; ao querer ansiosamente observar de perto a miragem entrevista nos horizontes da Serra desfiz o enleio. E também são assim os homens! Em lugar de permitirmos que o longe permaneça longe, embrumado ou ensolarado e repleto de faíscas milagrosas, apressamo-nos a correr ao seu encontro ansiosos de guardar para nós uma esteira da poalha, derramada e significante, apenas na lonjura! Esquecemo-nos que a Beleza é «estar ali» submersa nas águas ou pendurada nos céus e que a terra que nos atrevemos a chamar nossa, mesmo não nos pertencendo, amarfanha, por via dessa suposta pertença, o esplendor da refracção, o delírio sublimado, a fantasia dos longes! Queremos conhecer, desesperadamente conhecer; e então, em vez de lua e de luar, esses que nos encantam as noites e nos lançam em arroubos poéticos ficamos com um planeta estéril, sem atmosfera, sem vida, mero satélite da Terra sem o qual a mesma se desintegraria! Em vez de estrelas cadentes em noites de estio, estrelas minúsculas que nos encantam em  múltiplas cintilações, passamos a ter chuvas de meteoros, de calhaus efervescentes desprovidos de mágica estilhaçados e em órbita nas solidões vazias do cosmos! E por aí adiante! O conhecimento mata a poesia, destrói a magia, escalpeliza o uno em fragamentos desprovidos de luz. Foi assim que os gregos inventaram a ciência e depois a filosofia: quebrando o uno primordial, procurando o elemento genésico, reduzindo o todo mítico e coeso à fractura das partes e acabando com um pedaço de cinzas entre os dedos – também eles calcinados!
             Sejamos claros: o conhecimento é útil e eu, como muitos, procuro-o e desvendo-o, comungando na ânsia humana de decifração de enigmas; mas existe um limite, uma orla de mistério para além dos quais é pernicioso avançar sob pena de nos encontrarmos face a face com a aridez extrema e com a descrença. Por outro lado, quanto mais avançamos na pesquisa do ignoto, mais nos defrontamos com a vastidão, sempre crescente, do desconhecido e da ignorância: as mais rebuscadas pesquisas científicas da nossa era assemelham-se a brincadeira de crianças por onde perpassa a dúvida, a suposição e a omnipotência da hipótese. Basta analisar o percurso científico das últimas décadas para entendermos que em lugar da certeza temos a dúvida, em lugar da lei, a probabilidade, em lugar da fórmula, a estatística. Poderá esta situação do conhecimento significar que o universo deixou de  ser acessível à nossa inteligência humana, a partir de um certo grau de complexidade e de vastidão? Poderá significar que precisamos de ultrapassar a nossa limitação conceptual e de princípios a fim de podermos ver o invisível? Somos nós que nos detivemos num patamasr específico de evolução, a partir do qual não poderemos lograr decifrar mais enigmas? Precisaremos de fender a carapaça da nossa auto-suficiência e abrir a mente e o corpo para novas caminhadas? Ou será que, muito simplesmente, o mistério, enquanto tal, continua a ser o horizonte privilegiado da busca humana pelo saber?
             Quando penso na minha visão onírica, por entre os pinheiros da Serra do Espinhaço de Cão e na aproximação nefasta da realidade desvendadora e corruptora do sortilégio, parece-me que encontrei  a resposta.

INSTINTO

Posted in Reflexões em mi bemol on 03/09/2009 by reginasardoeira
     
 
 
 
 
 
INSTINTO
 
 
     Decerto o homem – com ou sem maiúscula – não é nada, e isto a que chamamos, ufanamente, consciência não passa de fantasmagoria, de uma sucessão de imagens que a mente recria, numa ilusão de impossível conceptualização, mas para a qual encontramos sempre palavras. Imagens e palavras, eis o que temos. E orgulhamo-nos disso. E chamamos-lhe conhecimento.
     Declaro-me céptica quanto ao poder do bípede arrogante chamado homem.
Poder! Que poder? Temos tanto poder como uma formiga ou um elefante! Qualquer gota de água nos faz transbordar, qualquer vendaval, estremecer. Não quero ter qualquer relação com esse tipo de poder, não ambiciono qualquer estatuto de excepção face aos outros seres da natureza.
     A consciência? Mas qual é a vantagem de termos, enquanto homens, consciência? Acaso não chegaria o instinto? Esse, que governa leões e formigas dando-lhes tudo o que necessitam – ainda que não saibam que necessitam! E que bom seria não saber!
    A necessidade apunhala quotidianamente a nossa ânsia de tranquilidade. A ambição projecta-nos constantemente para as lutas mais ferozes que as daqueles a que chamamos selvagens!
    A maioria dos homens vive na irracionalidade tanto mais perversa quanto é confundida com razão. Tanto mais obscura quanto é designada de consciente. Que sabemos nós? E como podemos dizer que sabemos?
    A necessidade obrigou-nos, desde sempre, a agir, levou-nos, pelos caminhos da selva, até ao asfalto da civilização. Acabámos esquecendo a selva, onde o instinto nos tinha sussurrado a primeira questão e, julgando responder-lhe, destruímos esse primeiro habitáculo. E a pergunta original, nunca respondida, confundiu-se, perverteu-se, produziu falsas respostas, engendrou questões marginais e deu-lhes soluções, a tal ponto que o que sabemos hoje é muito, o que sabemos hoje é avassalador mas, a todos os títulos, perfeitamente inútil.
     É claro que poucos me conseguiriam dar razão. Eu própria não dou razão a mim mesma, porque não posso: como todos, vivo, vigilante, nesta selva pervertida e vou aprendendo alguma da sobrevivência hábil de todos. Alguma! Apenas alguma! E  dou a esse saber-fazer uma importância mínima e, constantemente, transformo em ruído e isolo de mim o saber-fazer a que os outros me obrigam. Em tudo o resto deixo que o instinto pontifique.
      Não me lembro de ter aprendido a escrever, ou a falar ou a andar e, por isso, creio firmemente que qualquer uma dessas habilidades é apenas instinto – e este "apenas" não pretende ser redutor, ainda que o pareça. Não penso quando escrevo, não penso quando falo, não penso quando ando…e é tudo o que posso dizer. Ensinaram-me  a fazer isto e aquilo? Dizem que sim, é claro, todos nós dizemos que nos ensinaram e achamos que ensinamos outros. Só que, de facto, ensinar seja o que for a quem quer que seja não é possível. O que sobra, então, desta saga prodigiosa em que uns dizem que ensinam e os outros dizem que aprendem? Apenas e sempre o instinto, esse, que lidera os mais importantes dos nossos gestos, esse, que nos leva para a frente, apesar da consciência, apesar da razão.