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Escritor…Escrevedor…

Posted in Reflexões em mi bemol on 31/08/2009 by reginasardoeira

 

 

 

ESCRITOR…ESCREVEDOR…

      

 

         Escritor. Escrevedor. Escrevinhador. Escrevente. Escrivão…Quantas palavras em que é denunciado, de modo implícito  e óbvio, o acto de escrever! E contudo, indo ao cerne da acção que cada uma delas desencadeia, nenhuma pode entender-se como sinónima da outra, ou de todas.

        A escrita é uma técnica ensinada e aprendida nos primeiros anos de cada um, tornada que foi, ao longo da evolução humana, um inestimável instrumento de comunicação. Uns escrevem somente o mínimo indispensável à vida social; outros são compelidos a escrever no exercício da vivência profissional. O Escrevente, o Escrivão, o Escriturário, decerto outros termos designadores de actividades burocráticas e administrativas usam a escrita numa dimensão meramente técnica e profissional. Pertencem à escrita, executam-na, deixam dela testemunho: mas somente de modo exterior, assintomático, impessoal.

        O acto de escrevinhar é relativamente comum entre os homens, desde que são crianças e se enlevam nas primeiras garatujas, até à adolescência, idade típica do acto de escrevinhar, quando arroubos românticos e pseudo-poéticos fazem do papel o confidente preferencial. Não teria importância alguma, se o Escrevinhador adolescente pudesse entender que o que assim produz não possui qualquer valor literário – salvo as excepções geniais – e se dispusesse a arquivar os seus manuscritos; ou então, caso neles brilhasse a centelha criadora, a aprender com  os grandes como se dá a passagem de Escrevinhador a Escritor.  Não tenho a certeza se dominar a técnica da escrita poderá ser condição necessária e suficiente para que se dê semelhante passagem; mas estou segura que uma tal tentativa pouparia as estantes das livrarias de enormes mananciais de aberrações escritas…

        O Escrevedor é de outra natureza, muito mais perigosa que a anteriormente referida visto que não nasce de garatujas infanto-adolescentes, antes se enuncia e denuncia na idade adulta, quando um homem/mulher decide, de uma hora para a outra…escrever um livro! Este tipo de artesãos da escrita, mais ou menos cultos, detentores de uma certa experiência que julgam interessante narrar, desatam a lançar palavras para o papel e, ao fim de umas centenas de páginas, contentes consigo mesmos, ainda que o produto do acto escrevedor possa ter qualidade medíocre, decidem editar um livro! O Escrevedor pode recorrer a uma editora e ter publicação garantida, caso tenha perfil mediático ou haja nas suas histórias matéria escandalosa, obscena ou meramente «picante». Mas pode ainda fazer quantas edições de autor quiser, pode começar a intitular-se escritor e sair à cena com lançamentos e vendas. Nasce então o Escrevedor profissional, aquele que escreve com o fito de vender, aquele que ousa chamar romance ou prosa ou poesia ou crónica aos textos que compila e vai acumulando até ter volume suficiente para merecer o epíteto de livro. O Escrevedor pratica a escrita com o objectivo único de vender e, por isso, a prosa que executa é profundamente egoísta, pouco lhe importa se o que relata for absolutamente inútil, não o perturba o facto de as suas narrações serem pastosas ou ridículas, meramente enunciadoras de si, sem cunho universal, por essa razão. O Escrevedor pode ainda querer atingir um público, conquistar uma plateia específica onde logrará alardear importância. Dificilmente sairá desse círculo confinado, bastar-lhe-á o elogio de algumas vozes que em tudo se lhe assemelharão e jamais deixará que uma crítica séria lhe demonstre as falhas conceptuais, lexicais, semânticas ou de estilo.

        O Escrevedor não é um Escritor, muito embora produza livros; o Escrevedor é um artesão e nunca um artista, produz obra para vender, faz dessa actividade profissão e, porque disso sobrevive, disciplina-se e escreve tantas páginas por dia, a horas certas. Vejamos: esta prática do Escrevedor, este fazer da escrita, profissão, este vender, boca a boca ou porta a porta, o produto daí resultante, nada têm, em si mesmos, de chocante ou de reprovável, já que a História encarregar-se-á de joeirar, ignorando tais obras ou, quando muito, inserindo-as num parágrafo minúsculo, como produções menores da literatura.

        Sabe-se que Beethoven – um dos maiores artistas que a música jamais conheceu – foi inúmeras vezes «musicador», músico a soldo, produtor de peças por encomenda. Fê-lo para sobreviver: porque este homem de origens modestas nunca aprendeu outro ofício, era, com doze anos de idade, músico da corte e, desse modo, sustentava a família. Este homem grandioso, este artista ímpar de uma nobreza e elevação extraordinárias foi obrigado a compor e a vender, a dedicar sonatas, quartetos e sinfonias aos mecenas, precisou de regatear quantias, viveu atormentado com as necessidades humanas da sobrevivência e produziu obras para satisfazer esse fim…Mas dessas obras não reza a História, porque não foi aí que residiu a grandeza do seu génio, ela esteve sempre aquém ou além da admiração das massas, do gosto popular: aquém, na medida em que não foi entendido no seu tempo e o que foi entendido não tinha, de facto, valor; mas além, porque os séculos o consagraram fazendo retumbar o seu eco imortal. Portanto, o Escrevedor não tem qualquer importância, do mesmo modo que, por exemplo, a Sinfonia da Batalha de Beethoven não merece citação.

        Mas, apesar de a História referir exemplos do género, que não se iluda o Escrevedor: nada, nas suas obras feitas a peso e medida, terá poder para resistir e vencer.

        O Escritor não precisa de material de escrita – seja ele caneta e papel ou teclado e monitor – para ser, desde logo, Escritor em pleno. O lídimo Escritor produz os textos num continuum mental para o que lhe é apenas indispensável ser/estar vigilante. Um rosto humano, um pássaro, uma frase solta no ar, uma espreguiçadela, o voltear de uma onda ficam presos, enquanto motivos, na sua rede imaginária, associam-se a outros, tecendo, com eles, todas as tramas possíveis, caem no olvido, ressuscitam, emergem e submergem tantas vezes quantas forem necessárias ou inevitáveis; e um dia, quando o Escritor agarra a caneta e escreve, tudo estará harmoniosamente feito, desde logo.

        Evocando novamente Beethoven percebemos que foi deste modo, e apenas deste, que ele pôde ser um músico grandioso, mesmo privado do seu mais precioso instrumento, o ouvido. Curiosamente, a surdez foi condição do seu génio, libertou-o dos sons banais, do ruído da populaça e de tantos estertores sonoros e fê-lo viver a música por dentro, no silêncio. Durante 30 anos – desde os 26 anos e até à morte – Beethoven foi surdo, primeiro, ainda de modo intermitente e por fim, na totalidade. Mas, como a música vivia nele, como a música era o sangue que lhe corria nas veias, não precisava de ouvir da maneira que o fazem os comuns mortais para sentir a harmonia sonora, para compor mentalmente sinfonias, sonatas, missas, quartetos, ouvindo, por dentro, os pianos, os violinos, as flautas e também o murmúrio dos regatos e das fontes, o ciciar das folhas nas árvores das florestas, o canto dos pássaros em arroubos de euforia ou de mágoa. Não ouvindo fisicamente a música que vivia nele, pôde escrevê-la, fazê-la tocar, chegou ao ponto de dirigir orquestras mesmo sem ouvir o mínimo som. Chama-se a isto a irradiação absoluta do génio. Se Beethoven necessitasse do ouvido para ser músico, não teria chegado a sê-lo, pois perdeu-o demasiado cedo. Se Beethoven fosse um artesão – um «musicador» como escrevi há pouco – teria parado de compor, necessitaria de aprender outra arte qualquer, logo que ficou privado do ouvido, erroneamente considerado como sendo o instrumento do músico. Mas Beethoven era um génio da música, imbuída nele e nele contida desde o nascimento: não precisava de ouvir a matéria da música, difundida pelos instrumentos, pois possuía-a em si, no estado puro.

        O Escritor pertence a esta categoria. Mesmo sem escrever, materialmente falando, despojado de lápis e de papel, no negrume da noite mais escura, de olhos cerrados, o Escritor realiza os seus textos nos arcanos secretos da imaginação e da sensibilidade. E é por essa razão que o Escritor não pode fazer da sua arte profissão, não pode regulamentar a criação e debitar palavras contra-relógio, não pode estabelecer um horário de trabalho durante o qual exerce o seu mister. Enganam-se aqueles que julgam estar inspirado quem escreve, de ímpeto, uma página ou mil, enganam-se aqueles que pensam que a obra que jorra da mão vibrante nasceu no momento preciso do acto da escrita: a inspiração, se tiver chegado a sê-lo, ocorreu muito antes, ou foi ocorrendo, dia após dia, hora após hora, até se fixar, se chegar a fixar-se.

        O Escrevedor tem que escrever e riscar e rasurar e voltar a escrever, e é por isso que a obra que lhe sai das mãos revela, a espaços, inconsistência, desarmonia; o Escrevedor articula pesadamente as palavras e, de tempos a tempos, uma delas, muitas delas estão a mais ou não são as certas e o texto torna-se monstruoso e feio. O Escritor não risca, não rasura, não volta a escrever: e a obra irrompe coesa e harmónica como a criação do mundo no tempo primordial; o Escritor não precisa de articular seja o que for, cada som é lógico e íntegro, em si mesmo, e o resultado final da coordenação das partículas – que nunca o são, de facto, para o criador – só pode ser irradiante de beleza.

        O Escrevedor, se pretende escrever sobre um sítio, localizando nele a acção narrada, necessita de conhecer o local passo a passo, tem que ir lá, fotografar, recolher amostras e testemunhos; e, no entanto, por muito que se esforce, jamais conseguirá expressar o espírito do lugar, na exacta medida em que o faz depender de fotografias, amostras e testemunhos. Pelo contrário, o Escritor pode escrever sobre qualquer sítio, fazer decorrer uma acção seja onde for, mesmo que nunca tenha visitado o local: saberá, com justeza, identificar o ar que se respira em Paris ou no alto do Kilimanjaro, mesmo que nunca tenha saído do seu canto circunscrito de terra e, o que será ainda mais extraordinário, o seu leitor saberá que aquela é a atmosfera exacta de Paris e que essas são as luzes irradiantes das neves do Kilimanjaro, ainda que ele próprio as conheça de trato e o Escritor não. O Escrevedor, se deseja retratar uma actividade humana que ele próprio não tenha executado nunca, terá que aprendê-la primeiro para de seguida se sentir capaz de dar-lhe expressão: mas nunca o conseguirá, de facto, porque procedeu como artesão e o espírito da arte que intentou imitar permanecer-lhe-á alheio. E, desse modo, quem vier a lê-lo encontrará um simulacro e não será capaz de sentir a emanação subtil da actividade apenas imitada pelo Escrevedor. De modo diferente, o Escritor é capaz de incarnar em si todas as possíveis artes e actividades humanas, desde que as pense e se aproprie delas por dentro: quando as narra, quando as amalgama a uma trama que urde, está a reproduzi-las fielmente, pois viveu-as em primeira mão, foi o seu obreiro naquela viagem, antes referida, em que escreveu, sem lápis ou papel, por dentro de si. Logo, todo aquele que o ler vai sentir a verdade da descrição, pode mesmo identificar-se com o espírito presente, caso as actividades descritas lhes sejam comuns.

        Escritor. Escrevedor. Escrevinhador. Escrevente. Escrivão…tantas palavras designadoras do acto da escrita e uma, apenas uma, capaz de expressar, por inteiro, a nobreza prodigiosa de tal arte.

       

       

 

 

 

Manifesto

Posted in Reflexões em mi bemol on 14/08/2009 by reginasardoeira
 
 
 
 
 
 
MANIFESTO
 
 
     Façamos uma pausa ou interrompamos mesmo…afinal escrever um livro é um acto que não se compadece com esta publicação sincopada sempre a exigir continuidade. Escrever um livro é uma tarefa sagrada, e um cuidado absoluto deve obrigar o seu autor a um percurso solitário, em que as imagens e as palavras se anunciam e congregam produzindo um resultado. E assim, O Farol vai baixar a essa zona secreta e pedaços de lava irão sendo acrescentados até que o vulcão possa anunciar-se, coerente e limpo. Um vulcão coerente e limpo? Porque não? Vulcões são montanhas ígneas e resfolegantes, vulcões são pedaços de matéria fechados num arco, contidos e silenciosos, até que uma força ignota os acende e os atira para planícies e vales, em agonia e êxtase. O Farol promete ser dessa categoria de seres, se bem que haja nascido preso e indeciso, no ápice do bloqueio mental que, a espaços,  acomete o criador. O bloqueio mental é sufocante, estranho, insidioso. Sabemos que as palavras estão lá; mas, desorganizadas e soltas, tardam em sair na coesão precisa do tetxo. Pela parte que me toca, quando escrevo seja o que for percebo que antes de iniciar o gesto, o texto existia na sua integridade: a resolução em palavras foi apenas o escoar natural da torrente aprisionada. Eis porque o vulcão parece ser a metáfora justa da criação: a matéria está lá, dormente e indecisa, quem vê de fora nada sabe dos turbilhões urdidos no côncavo secreto e um dia a explosão acontece, o êxtase irrompe, o logos faz-se fermento divino apto a gritar fiat lux!
      Entretanto fragmentos poéticos irão percorrer o espaço da prosa sagrada que urge não desvendar de todo.

Insignificâncias

Posted in Reflexões em mi bemol on 12/07/2009 by reginasardoeira
 
 
 
 
 
 
 
 
 INSIGNIFICÂNCIAS
    
 
 
     Todos os dias a todas as horas, as insignificâncias abatem-se sobre nós, perturbando ou anulando a intrínseca e verdadeira razão de sermos humanos e de estarmos vivos.
     Que importância tem que um  homem tenha sido vendido e comprado, tenha sido mandado de um país para outro a soldo de um clube desportivo? Que importância tem para nós, humanos de mente e corpo, que semelhante personagem se passeie por aqui e por ali, gastando fortunas, que tenha este ou aquele aspecto, esta ou aquela maneira de viver? Porque nos atiram quotidianamente ao rosto semelhante insignificância? O homem em questão não passa de um escravo, deixou-se comprar e vender, e aos seus proprietários vai entregando tudo o que tem de seu e que aos donos ainda interessa, a saber: uma agilidade, uma técnica, uma aptidão que pouco são em si mesmas mas que, erguidas aos píncaros, por uma necessidade lamentável de preencher vazios, se ornaram em símbolo e em mito.    
     Que importância tem que um homem, mesmo que seja um governante, tenha dado vazão ao primarismo subjacente a qualquer natureza, mesmo que humana, e executado, no palco político e mediático, um gesto deselegante, para que nos mostrem morbidamente a imagem letal e encham com esse lixo páginas de jornais? Que importância tem para nós, humanos de mente e corpo, semelhante insignificância?
     Que importância tem que um outro homem – pobre e esfíngica personagem pálida e descaracterizada – tenha deixado de viver, e se mude o rótulo de «extrema decadência» e «antigo rei da pop» para  «um dos mais significativos génios do século XX» e, de novo, «inquestionável rei da pop»? Que importância tem que ele haja nascido negro, para depois passar a branco, que tenho sido jovem e vivo para se transformar em amorfa criatura marfínica, pouco mais que sombra, pouco mais que evanescente visão do humano?
     Insignificâncias, todas estas histórias, propaladas e sugadas até ao âmago enquanto despertarem o apetite das multidões, mas apenas rasando a superfície do ser, porque jamais saberemos, de facto, quem é o jovem mito dos relvados, adulado e disputado pelas multidões, e contudo dono de um ser íntimo indesvendável, nunca lograremos perceber as autênticas razões do gesto deselegante do homem de estado, ele próprio apanhado numa teia de suposições e fraudes em que a palavra dita nunca é a expressão do pensamento ou a verdade do sentir, e nenhuma revelação mediática será capaz de demonstrar, inequivocamente, as motivações reais de um homem acossado pelos seus próprios infernos, erguido aos píncaros da fama e destruído nas arenas do espectáculo que o ergueu e flagelou.
     Insignificâncias, eis tudo o que temos para alimentar a vigília, insignificâncias, eis o que elevamos à categoria de sentido da existência, insignificâncias, eis o que nos depõem à entrada do nosso pensamento, para que tudo o resto desflore e desfolhe em atonia de significado.
     Sei bem que todos os homens têm um fundo e uma superfície e que as insignificâncias com que nos acenam sobre os que saíram do casulo do anonimato e se passeiam nas arenas da notoriedade não vão para além da medida rasa do ser; sei bem que esses, todos esses que por uma ou por outra razão são erguidos (ou rebaixados) até à celebridade, são muito mais do que a primeira página dos jornais, a abertura das notícias ou o instantâneo captado pela objectiva assestada aos seus fragmentos de vida. Mas nós, que espreitamos a notícia ou o instantâneo, nunca saberemos quem são, de facto, esses que, apesar de tudo, dizemos conhecer. Nunca conseguiremos ver para lá da sombra que o vulto da parafernália mediática lhes lança sobre a existência, decerto comum, decerto grandiosa, decerto angustiada…pois é esse o sinal de ser homem e de estar vivo.
     Do mundo dos homens e dos próprios homens apenas avistaremos a verdade do que nós próprios somos, o significado dos nosso gestos e actos, a razão de ser da substância com que edificamos o nosso hábito de viver e, mesmo estas poucas auto-verdades só nos serão reveladas se aquietarmos a mente e sondarmos verdadeiramente o nosso mundo, não somente aquele que o pensamento e a emoção nos enunciam, de nós para nós próprios, mas também o que vemos espelhado nas faces dos que encontramos no caminho, na obra que construímos, nas escolhas que fazemos e nos sonhos que perseguimos ou abandonamos.           
     Até para nós mesmos somos, pois, enigma, até o nosso rasto nos escapa, até a nossa sombra empana o brilho da nossa luz, quando tentamos ter a certeza sobre as razões dos nossos actos. Nada há, de facto, que possamos realmente conhecer. «Eu sou eu e a minha circunstância», disse  José Ortega y Gasset, sintetizando de modo preciso, e contudo ambíguo até ao cerne, o que necessitamos conceptualizar para podermos dizer o que somos: porque a minha circunstância é um intrincado múltiplo e vário de seres e situações, a minha circunstância é uma plêiade de momentos e de épocas, de sonhos e de evanescências, de miragens e súbitos despertares! E eu, no meio profuso da minha circunstância, vario, uma e muitas vezes, num só dia, numa só hora, na efemeridade praticamente infinita do átomo do tempo e nunca agarro senão a superfície insignificante de que sou e não sou feita, qual instantâneo de câmara oculta, qual parangona de jornal sensacionalista, qual imagem animada de qualquer noticiário.

GATOS E HOMENS – UMA SEQUELA

Posted in Reflexões em mi bemol on 04/07/2009 by reginasardoeira
 

Egon Schiele, Amizade

 

GATOS E HOMENS – UMA SEQUELA

 

«Quanto ao seu desabafo da superficialidade e infidelidade masculina, de facto a consciencialização responsabilizante do relacionamento amoroso não está muito desenvolvida em geral e nesse aspecto claramente somos ainda infra-homens, tão dependentes de instintos e sensações bem descritos por si e que acabam por rebaixar a grandeza do Amor, que como diz é eterno e contém em si todas as vivências, acolhimentos e entregas verdadeiros. Agora penso que os que partiram podem abraçar outros seres, e que a tábua raza é de facto uma incorrecta posição e que os afastamentos nunca deviam ser completos e que aferições de afinidadess vibratórias e circulações energéticas de apoio e união deveriam e provavelmente acontecem sempre, embora muitas vezes ora um ora outro lado é incapaz de manter o Amor já não exclusivo mas actual, ou que seja, no mundo semi-virtual da alma e dos sonhos operativo… »(Pedro Mota, Comentário)

 

 

       No texto a que este comentário foi feito (GATOS E HOMENS)  pretendi abordar algo de bastante mais profundo que a infidelidade masculina. Curiosamente, considero a infidelidade, senão natural, pelo menos justificável, atendendo a que o homem é, por natureza, polígamo, e o casamento, exigindo votos de amor eterno, de fidelidade, até que a morte separe o casal, contraria esta tendência natural, propiciando a, também natural, infidelidade. Por outro lado, o sentimento que, à partida, empurra dois seres de sinal contrário um para o outro, não passa de uma emanação biológica, electro-química, feita de humores e fluidos, todos eles saciáveis e saciados ao fim de um certo tempo. Estranhamente, os atractivos exteriores ou físicos, daquela que propicia a atracção, podem ser, posteriormente, quando o apetite foi sanado, causas de tédio e de rejeição, pelo que nem a mais bela das criaturas à face da terra terá poder para prender eternamente o macho, inebriado primeiro, enfastiado depois.

       O Amor é de uma categoria diferente, não se exerce nesta troca de fluidos ou de correntes electro-químicas, passa-se a outros níveis extra ou super humanos, transcendentes, portanto. A atracção epidérmica esgota-se em algumas sessões de prazer; o amor persiste e pode muito bem subsistir sem a componente electro-química. Portanto, Amor e atracção são níveis diferentes de relação humana e nem sempre ocorrem em simultâneo, pelo que pode haver Amor sem atracção e atracção sem Amor. A infidelidade é um mito alimentado pela religião que sacramenta as uniões, pelo ciúme, que as torna possessivas, pela insegurança, que lhes dá um matiz patológico.

       Serão discutíveis todas estas teorias; porém, estão, estatística e logo sociologica e historicamente comprovadas, podendo ser empiricamente observadas no nosso dia a dia, quer na própria vivência, quer na dos que nos cercam.

       Acima de tudo, no texto GATOS E HOMENS, quis realçar uma outra forma de estar, um outro estímulo que pode conduzir um homem para uma mulher produzindo efeitos diferentes num e na outra.  Fiz a evocação de um homem (macho) desejoso de viver uma aventura, ou porque está momentaneamente disponível, ou porque faz parte do seu modo de ser, ou porque lhe surgiu uma oportunidade. Esse homem investe (está na sua natureza investir) contra o alvo da sua intenção de momento sem levar em conta as características específicas dessa a que chamei «alvo». Para ele tanto faz, é uma entre todas as possíveis, é o receptáculo agradável para uma, duas, três explosões sensoriais: a partir desse número pré-estabelecido, regressar ao alvo não faz qualquer sentido para o predador. Vejamos, entretanto, a presa. Pode ser que ela, no acto da entrega, esteja numa disposição diferente da do macho predador e se entregue, não para dar vazão a descargas electro-químicas, mas porque razões apenas dela e que acredita serem partilhadas pelo macho predador, que soube aliciá-la e convencê-la, a levam a conceber a possibilidade da vivência de uma história a dois. Ela acredita nisso, ele sabe que ela acredita e serve-se desse conhecimento para saciar nela as suas fomes momentâneas, sabendo que não passarão disso mesmo!

       Foi este embuste masculino que pretendi realçar no texto GATOS E HOMENS, embuste que considero criminoso pois é, todo ele, traiçoeiro e vergonhoso, desonesto e fraudulento e contra o qual nenhuma lei foi ainda instituída. Homens e mulheres podem eventualmente jogar, por divertimento apenas, a encenação do acasalamento: mas é necessário que ambos conheçam, à partida, as regras do jogo e saibam os custos emocionais das consequências. Se assim não for, e apenas um deles souber das regras, que manipula a seu bel-prazer, o crime está perpetrado e é por essa razão que me parece ilegítimo e injusto que, a seguir, esse macho que enganou e vitimizou uma presa sacuda a poeira do vestuário e se acredite suficientemente honesto para cortejar uma mulher (desta vez a sério) propor-lhe casamento e efectuá-lo, fazendo tábua rasa do crime praticado antes. Nunca esse perpetrador será um homem honesto e não terá direito à felicidade. Acontece o mesmo com os criminosos de direito comum. Imaginemos um assassino em série, um violador compulsivo, um pedófilo: será suficiente condená-lo, encarcerá-lo, sujeitá-la a x anos de prisão para que ele volte à sociedade, limpo e perfeito como se nada tivesse feito antes de condenável? Será que daí para a frente o assassino, o violador, o pedófilo pode sentar-se à mesa de todos com honorabilidade, fazendo tábua rasa do seu passado de crimes? Mesmo que não cometa mais nenhum, mesmo que  um milagre o tenha regenerado, o sangue das vítimas não será um rasto temível que o criminoso transportará para sempre? E poderá ele dizer calmamente perante aqueles de quem foi algoz: «Cometi crimes contra vós, lamento ter-vos feito sofrer, mas agora estou curado e então seguirei em frente, tenho direito à felicidade! Enganei-vos enquanto me imiscuí no vosso mundo, usei-vos para em vós cevar os meus instintos, mas passou e agora sou um homem honesto!»?

       Eis o cerne da minha reflexão. Creio que o carácter de um homem é revelado em todos os seus momentos e que adular e seduzir para proveito próprio quem se entrega ao adulador com inocência, deixar  a seduzida entregue a um sentimento devotado e em crescendo, enquanto ele bate em retirada são gestos que não abonam o carácter de quem assim procede. Por mais que reflicta sobre o tema não consigo justificar a inteireza identitária de semelhante mistificador. Por mais que forceje o meu pensamento a admitir que esse homem pôde ser vil, mas também pode ser são, pôde ser desonesto, mas também pode interagir com verdade, pôde usar e abusar de quem se lhe entregou, mas também pode ser o par de alguém…por mais que lide intelectualmente com estas antíteses, do ponto de vista integral, que não apenas racional, rejeito tais personalidades e considero-as pouco menos que monstruosas. 

 

FILÓBIA – O AMOR À VIDA

Posted in Reflexões em mi bemol on 03/07/2009 by reginasardoeira

 

 

FILÓBIA – O AMOR À VIDA

 

«Um bom manifesto inicial pela abertura maior desta sociedade e da nossa cultura à Filosofia, à sabedoria, à capacidade do verdadeiro filósofo/a, que é um amigo ou amiga da sabedoria, do conhecimento vivido e integrado, possa maieuticamente pela palavra em diálogo, ou ainda mais subtilmente, ajudar o outro a fazer luz e harmonia no seu interior e na sua cosmovisão.
Por essa demissão interventiva dos licenciados em filosofia e dos filósofos, certamente por pressão ao longo dos tempos de diversos sectores, de religiosos a políticos e a tecnológicos, assistimos à insuficiência dos psicólogos em arcar com os mais sofredores das crises existenciais e contemporâneas e à multiplicação dos esoterismos e alternativas de pouca qualidade.
Força pois para abrir o 1º consultório de Filosofia em Portugal, ideia original e certamente necessária e salutar, nem que seja para ajudar algumas pessoas a pensarem, sentirem ou intuirem melhor a si próprios e ao mundo múltiplo que a tantos manipula, mas que é está unificado pelo Logos, que é também a compreensão sábia que anima a filósofa ou o filósofo.» (Pedro Mota, Comentário)

 

 

       Antes de ousar abrir o meu consultório de Filosofia, posso sempre treinar, usando esta via. Nem sequer preciso de sair do meu espaço para chegar aos outros, basta que eles venham e se apresentem: e assim, poderei estar por detrás de uma porta, aguardando os que desejam conhecer-se. A fechadura estará lá, decerto; mas não serei eu a espreitar por entre as teias de aranha e a caliça, uma vez que a porta é de cada um que se permite sondar-se até ao âmago.

     A porta carcomida e a fechadura são símbolos de existências em derrapagem e contudo abertas num remoto local que terá que ser descoberto, primeiro, admitido como abertura, depois e, por fim desvendado pelo olhar, tornado acutilante, capaz de ver e perceber as gradações vitais do outro lado. Eis a tarefa do Filósofo/a, eis a definição actuante da Filosofia, esta que é amor pela sabedoria, mas também amor pela vida : e eis a Filóbia, palavra que ainda não existe nos dicionários mas que inventei há anos para dar sentido ao meu ser filósofa.

    Penso que o vulgo – e quando utilizo a palavra vulgo, não estou a ser pejorativa, mas a referir-me à esmagadora maioria das pessoas, incluindo os cultos, incluindo os sábios, incluindo os licenciados em Filosofia (…) – não compreende o significado da palavra sabedoria neste contexto que é o da σοφία (sophia) ou da  φρόνησις (phronesis), a sabedoria prática, a sabedoria ética, a prudência, a virtude. Estes últimos termos – prudência, virtude – foram desfigurados pela religião católica que deles se apropriou no sentido de os referir às suas práticas. E no entanto, a prudência e a virtude são os ingredientes da phronesis aristotélica, são as qualidades que o indivíduo precisa de cultivar acima de tudo se quer viver bem, se quer actuar correctamente.

    Um consultório de Filosofia ou talvez um laboratório – pois, neste contexto, «mestre» e «discípulo» interactuam, sendo, assim, esse lugar um palco fértil de interacções – não se substitui aos consultórios de Psicologia ou de Psiquiatria ou de práticas esotéricas, quaisquer que sejam. Vale por si, representa a primeira etapa para o auto-conhecimento, para a descoberta do fio condutor existencial daquele que se investiga a si mesmo com a ajuda sábia do filósofo. Sábia, esclareço, sempre no sentido grego, de procura, de sondagem, equiparada, como o Pedro Mota diz no seu comentário, à arte da maiêutica levada a cabo pelo filósofo Sócrates, arte de fazer parir a verdade, essa que ilumina o fundo do ser e deve ser parturejada a fim de servir também de farol à superfície e logo ao mundo circundante.  Essa primeira etapa de que falo pode bem ser a última, se a mente do auto-investigador aderir ao esvaziamento inicial e ao preenchimento ulterior; porém, caso as investidas do filósofo/a não encontrarem receptividade, caso a mente daquele que a si próprio sonda interrompa a caminhada, pode passar para outras instâncias – as da Psicologia, as da Psiquiatria – que, em sintonia com a primeira sondagem,  orientarão as demais.

     É deste modo que eu vejo a função do Filósofo/a e o papel dos consultórios ou laboratórios de Filosofia, em interacção dialogante com os demais sectores de investigação da mente, avesso a medicações químicas, ou a processos morosos de análise unilateral, mas suficientemente esclarecido para determinar quando termina o seu papel, ou quando deve passar para outros a tarefa.

    O Pedro Mota fala em «demissão interventiva dos licenciados em filosofia e dos filósofos» porque os observa (tal como eu) confinados a uma sala de aula, onde os manuais ou as sebentas pontificam. Eu própria fui aviltada com aulas de filosofia em que me mandavam «papaguear» pensamentos de filósofos ou «despejar» matérias decoradas em provas, de onde o pensamento original, discursivo, dialéctico teria que ser cuidadosamente retirado. Se não me tornei papagaio filosófico foi na exacta medida em que resisti, não me deixei encharcar por teorias, não aderi à memorização abstracta e descontextualizada de pensamentos, tornei-os meus, inventei-os e reinventei-os, e tudo o que havia para aprender – pois tratava-se do pensamento de outros – aprendi-o, exclusivamente, à minha própria custa. Hesitei muito antes de tornar-me licenciada em filosofia, pois percebi que essa licenciatura nada significava, filosoficamente falando, tendo apenas um papel meramente académico e logo burocrático; por fim, cedi à pressão familiar, obtive o diploma mas – desta vez sem hesitações – optei por não o utilizar nas funções tidas como óbvias para o licenciado em Filosofia, recusei o ensino e fi-lo enquanto me não senti ainda mais desfigurada noutras profissões que tarde ou cedo vim a adoptar.

       O ensino veio depois e ficou pois entendi, gradualmente, que as salas de aula podem ser excelentes laboratórios de Filosofia, desde que o professor consiga distanciar-se do manual, puxar pela mente do jovem até aos limites, envolver-se com  ele numa luta mente a mente, arrancando-o ao comodismo do senso-comum e dos preconceitos. Venço parcialmente essa luta na medida em que o combate é desigual: estou eu, de um lado e 30, do outro – 30  predadores da verdade, 30 amordaçados ao conforto das opiniões colhidas nos media e na sociedade em geral, 30 mentes desatentas a si próprias e cada vez mais aturdidas pela parafernália tecnológica que lhes substitui o ser. Mas esse ganho parcial, essas vitórias que vou conseguindo quando, de entre a turba flutuante, um, dois, três apreendem o sentido do que deles espero, enquanto aprendizes do filosofar, ensina-me quotidianamente o caminho, faz-me cada vez mais réproba relativamente às fórmulas decoradas, que se esvaem logo que não temos necessidade de pô-las em prática e, em simultâneo, cada vez mais aberta ao culto da Filóbia.

     Deste modo, tomando como mote o comentário do Pedro Mota, dou sentido ao que escrevi no perfil (e depois apaguei) e respondo um pouco mais à questão que coloquei antes (O que é um filósofo/a?).

    Ignoro se chegarei algum dia a abrir um consultório/laboratório de Filosofia. De certo modo aboli essa hipótese quando a ficcionei em O Pulo do Lobo (Editora Pé de Página, 2006), para quase de imediato a destruir, não porque fosse absurda, mas porque o Filósofo da minha história sofreu a desilusão, por força dos que não lhe entenderam os desígnios. Ou talvez eu esteja à espera do companheiro/a capaz de se abalançar comigo a empreender semelhante tarefa! E certamente acontecer-me-á o mesmo que em tempos abalou Friedrich Nietzsche até ao cerne, esta busca de espaços para filosofar e de companheiros de eleição capazes de reinventarem o espírito da douta-sabedoria de Sócrates.

 

Os Filósofos e a Fechadura

Posted in Reflexões em mi bemol on 03/07/2009 by reginasardoeira
 
 

 

     

 

 

      Os Filósofos e a Fechadura

   

 

     O que é um filósofo? Eis a reflexão que me proponho hoje, aqui e agora, depois de ter apagado as três ocupações com que preenchi, em tempos, o meu perfil.

     Para sobreviver sou professora de Filosofia; mas a minha produtividade não se esgota nessa tarefa. No tempo que me resta, escrevo, mas os livros que publiquei e os que tenho para publicação (menos ainda!) não contribuem praticamente nada para a minha sobrevivência – ou seja, ganho muito pouco com a venda dos livros. Tudo aquilo que escrevo, seja poesia, romance, ensaio, teatro (…) traz a marca da reflexão filosófica, nunca escrevo textos planos, óbvios, lineares, a  profundidade analítica perpassa neles espontaneamente porque o exercício do pensamento é a minha tarefa essencial. Assim sendo, como hei-de definir-me em termos de ocupação?

      Há tempos disseram-me que, escrever aqui, no espaço do perfil destinado à ocupação, «Filósofa», é uma provocação aos leitores, é uma brincadeira, portanto: não há filósofos/as, não saímos das Faculdades de Filosofia com esse título, do mesmo modo que o Médico ou o Advogado ou o Psicólogo. Saímos «Licenciados em Filosofia» e o que nos espera, profissionalmente falando, é uma sala de aula, com adolescentes ou jovens adultos à frente, consoante nos detemos pelo ensino secundário ou avançamos um pouco até ao ensino universitário. Ser licenciado em Filosofia ou Mestre em Filosofia ou Doutor em Filosofia não é, por isso, o equivalente a ser licenciado em Medicina, ou Mestre em Psicologia ou Doutor em Direito: a esses é dado com facilidade o título de Médico, Psicólogo ou Juíz; no nosso caso, dizer « Sou Filósofa» ou «Sou Filósofo» não passa de uma piada!

      Não concordo com esta situação, ainda que, convenhamos, não exista ainda a profissão de Filósofo/a reconhecida e, acima de tudo, entendida pelas pessoas que, provavelmente, achariam extravagante encontrar, a par dos consultórios de Medicina ou de Psicologia, um consultório de…Filosofia! Para a maioria, os filósofos são gente estranha, e a Filosofia um enigma dispensável, pelo que um consultório de Filosofia com um filósofo/a à frente não teria muitas oportunidades de sucesso.

    É claro que estas possíveis reacções perante um consultório de Filosofia advêm de uma ignorância: o vulgo não sabe para que serve, de facto, a Filosofia, ignora a sua vertente prática, não reconhecendo, por isso, valor ou  credibilidade a quem se intitula Filósofo/a. O vulgo não consegue ver para além da palavra, enigmática, só por si, e dos boatos que correm por aí a respeito do fraseado difícil, confuso e inútil dos filósofos.

    Apesar de, por enquanto, a Filosofia continuar a ser uma matéria obrigatória para os alunos do ensino secundário, acredito que a esmagadora maioria deles sai das escolas sem ter sentido a vibração da Filosofia, esta que eu propugno e que pratico: no dia a dia, na sala de aula, no mais íntimo de mim e (quem sabe?) pode ser que um dia tenha arrojo suficiente para abrir um consultório de…Filosofia! Quem me consultar verá então o que significa de facto ser filósofo/a e intitular-se como tal! (Isto não é uma piada!)

GATOS E HOMENS

Posted in Reflexões em mi bemol on 25/06/2009 by reginasardoeira
    
  
Egon Schiele, 1917
 
 
 
GATOS E HOMENS
 
 
 
     

      Um gato não é uma pessoa. Porém, quando vive connosco, adquire e transmite sensações, eflúvios, sentimentos, enfim todo um conjunto de efeitos recíprocos que acabam por fazer dele membro da família, parente próximo e íntimo. Ao cabo de alguns anos de convivência, o gato humanizou-se e nós felinizamo-nos, estabelecendo regras tácitas de partilha de espaços, leituras concordantes de gestos e de sinais e toda a panóplia de pequenos/grandes detalhes constitutivos de uma relação verdadeira. Citando Montaigne, «Quando brinco com a minha gata, quem sabe se ela não está a brincar mais comigo do que eu com ela?» (Montaigne,1533-1592, Essais) , ouso atribuir características muito próximas das humanas aos felinos e afirmo, sem rebuços, que eles pensam e que fazem grande esforço para nos entenderem e comunicarem os seus pensamentos.

    Tenho um gato e, até há dois meses atrás, tinha dois. Um deles morreu e aquela súbita e inesperada desaparição desse elemento da família, da casa, do quotidiano representou, primeiro, um choque, depois, uma saudade intensa e agora, uma espécie de conformação, não isenta de nostalgia. Percebo que, apesar de não estar fisicamente aqui, a sua presença flutua nos espaços, os sítios que ele elegia para dormir ou contemplar persistem os seus sítios e o outro, companheiro de sonos, de brincadeiras e de algumas lutas, alterou comportamentos, como se precisasse de mais afecto e atenção, agora que está só. O espírito do gato permanece aqui, e esta sensação não é uma fantasia ou um surto da imaginação, mas a realidade provada e comprovada diariamente.

    Serve esta espécie de introdução para aludir ao fenómeno das relações humanas, sejam elas de pessoas para felinos, sejam elas de pessoas para outras pessoas. E eu pergunto: como pode anular-se, com um gesto ou com uma palavra, o efeito de uma relação? Como pode exorcizar-se o espírito do ente amado e afastá-lo para sempre, quando com ele privámos na intimidade? Como pode tratar-se com frieza ou olhar com indiferença aquele que um dia partilhou o nosso mundo, passeou nos nossos sítios, escutou a nossa voz, sentiu o sopro do nosso espírito e o calor da nossa carne?

      Escrevo estas perguntas e só encontro a minha resposta: não pode! Cada um desses que connosco caminhou, por algum tempo, e que depois deixámos ir, ou se foi de livre vontade, integra a nossa história pessoal que, de uma forma ou de outra, nunca mais será a mesma! Cada um desses entes (gatos ou pessoas) a quem deixámos entrever a intimidade da nossa vigília, do nosso sono, das nossas grandezas e das nossas misérias persiste, com um rasto de presença, não só no futuro da nossa história, mas também na alteração do nosso passado e nas emoções do nosso presente. Doravante, novos marcos ganharão ênfase na estrada por onde caminhávamos, certas curvas encontrarão razão de existir, as encruzilhadas e os desvios adquirirão substância e mesmo os retrocessos, as hesitações, o cansaço, próprios de qualquer caminhada, serão vistos e conceptualizados de modo novo, à luz da presença, feita ausência, desse que passou por nós para nos deixar em seguida.

     Confesso que não entendo os homens, principalmente os homens-machos, os seres humanos do sexo masculino, não entendo como podem entrar (visceralmente falando) no recesso mais íntimo  de uma mulher e aí deixar a sua marca, e depois sacudirem o pó dos sapatos e partirem para nunca mais se lembrarem daquela a que ousaram recolher-se. Não entendo como podem aceitar a oferta generosa e afectiva da interioridade de uma mulher, servirem-se dessa dádiva, no auge de uma mera explosão fisiológica, repetirem o gesto uma e muitas vezes, sabendo que o receptáculo que se lhes rende traz consigo toda uma plêiade de emoções e sentimentos, e a seguir partirem para os seus mundos, passarem para outras experiências, onde farão exactamente os mesmos gestos, com inteira sensação de honestidade. Não posso absorver que sejam capazes de usar a paixão sincera de uma mulher, que deixem consolidar-se o amor, que os aceitem, paixão e amor, como se fossem um direito seu e, mais tarde, no auge do enfado, enviem sinais de necessidade de fuga, aviltem quem os ama com desconsiderações e mentiras e possam, logo a seguir, cair em outros braços, seguir em frente com esses braços e com o corpo todo, e achar que são homens a sério, mesmo deixando rastos de desespero pelo caminho. Penso então que terá que haver para estes predadores um castigo, penso que falta inventar a lei que os puna, penso que, a partir do momento em que cometeram o crime do abuso, jamais deveriam ter direito ao compromisso honesto com outra mulher. Julgo mesmo que essa punição virá, estará escorregando, aos poucos, para o âmago da vida construída após a fraude e que apenas uma questão de tempo os impedirá de ver a própria ruína.

    Afirmei que não compreendia essa sub-espécie de humanos, que são os homens, na medida em que também não entendo os actos de intimidade como meras excreções fisiológicas, como explosões de fluidos orgânicos cujo escoadouro pode ser o ventre de qualquer uma. Actos de intimidade são momentos de partilha durante os quais se entrega tudo e nessa tarefa estão implicados mente e corpo, emoção e sentimento, sensualidade e afecto: como pode um homem propiciar esse ritual fantástico e depois sair, batendo a porta, para não regressar nunca mais? Como pode ele servir-se do receptáculo que o acolheu e, no fim, deixar umas notas de banco sobre a mesa e partir para as suas outras vidas?

    Comecei por falar das marcas existenciais que, infalivelmente, deixámos uns nos outros sempre que confluímos, e aí regresso para garantir que todos esses que um dia ousaram tecer histórias de fraude, junto de quem os aceitou de corpo aberto, de mente actuante, de espírito livre, ficarão para sempre com esse rasto de presenças, dentro de si, por mais vidas que construam, por mais famílias que julguem que estabeleceram, por mais honorabilidade que julguem possuir. E, tarde ou cedo virão assombrá-los como se fossem  fantasmas e povoar-lhes sonhos e vigílias, porque é este o tecido das relações humanas.

    Nada direi sobre as mulheres neste domínio, não as conheço de experiência feita, na intimidade da relação visceral; mas, quanto a mim, declaro que, do mesmo modo que sinto as emanações todas do meu gato persa, que por aqui viveu nove anos e comigo construiu uma história, sinto também as energias de outras ligações que, aparentemente, passaram, porque o outro lado dessas histórias se ausentou fisicamente; e não entendo como pode esse outro lado criar novos laços, fazendo tábua rasa dos antigos.

     Julgo que a humanidade decaiu lentamente, tão lentamente que nos descuidámos e não demos conta. Julgo que atingimos o fundo e que, para lá do fundo, só resta a ignomínia do infrahumano que já começamos a ser; nunca me pareceu tão certeiro o grito de repugnância de Zaratustra quando ouviu o lamento do Mais Hediondo dos Homens e, com Nietzsche, esse homem que nasceu póstumo e de quem, por isso, são tão actuais as profecias, proclamo: «Agora é preciso destruir o homem para que o Super-Homem viva!» (F. Nietzsche, Asssim Falava Zaratustra).

 

 

 

Cartas de Amor

Posted in Reflexões em mi bemol on 21/06/2009 by reginasardoeira

    

Breughel, A Torre de Babel

 

 

 

 

CARTAS DE AMOR

 

 

 

 

      Quando leio poemas de amor, declarações de amor, cartas de amor, textos que surgem, em abundância, nestes espaços, sou acometida de uma sensação invencível de desconcerto. O nosso mundo não é marcado pelo amor, pois não? O nosso mundo é gerido pelo ódio, pela violência, pelo interesse, pela hipocrisia, pelo caos, não está à vista? O nosso mundo está enfermo, carece em absoluto de valores, vive no contexto de atropelos de humanos contra humanos, alimenta-se de vinganças e de intrigas, corrompe-se na devassidão e na artimanha…não é?

    Pode ser que eu seja irremediavelmente céptica, mas o cepticismo que propugno é a expressão real dos acontecimentos  testemunhados quotidianamente: como pode haver tanto amor, derramado nestas páginas, e tanto horror desfraldado à vista de todos os que  escrevem e lêem as mesmas páginas? Dir-me-ão que sim, que pode, mais, que é preferível ler textos de amor – mesmo falsos – escrever odes românticas  – ainda que feitas somente de palavras astuciosas –  do que expressar ou desvendar a verdadeira e única expressão do nosso mundo.

   Há duas semanas atrás fui a um casamento, daqueles que – percebi-o aos poucos, no decorrer das inúmeras cerimónias que a festa acumulou – são frequentes no nosso tempo e para os quais as famílias espremem economias, pedem empréstimos, investem um capital desmedido. Só o respeito e a amizade que nutro pelo noivo me fizeram ir e depois suportar e até tolerar e mesmo usufruir com prazer o fausto de semelhante banquete! Mas estive sempre dividida entre dois sentimentos: a vontade de justificar a opção faustosa do meu amigo e o horror de semelhante desperdício, absolutamente supérfluo, quer para eles, cuja vida futura será o que eles forem, enquanto pessoas, e não o que aquela festa patenteou, quer para nós que ali participávamos, até aos limites e muito para além da nossa necessidade de consumir, de comer, de gozar surpresas e rituais cuidadosamente preparados e ensaiados.

    Por outro lado, a cerimónia em si, aquela que a Igreja Católica considera ser a única forma válida, melhor, verdadeira e legítima, de unir casais pelo sacramento do matrimónio foi apenas um ponto acima do medíocre e, quanto à homilia do sacerdote, um ponto abaixo do muito mau. Reparem: os noivos estavam ali, para, mais ou menos convictamente, celebrarem o casamento pelo ritual católico… e o que faz o padre? Em vez de centrar a sua atenção exclusiva nos dois jovens e louvar-lhes o acto sagrado, não se coíbe de fazer extrapolações absurdas condenando explicitamente os casamentos civis (não são verdadeiros casamentos, dizia ele, apenas contratos) e de aludir, de modo enviesado, mas mesmo assim perceptível, a outro tipo de uniões reivindicadas por certas minorias, uniões condenáveis, uniões absurdas (segundo ele)!

     Este exemplo foi uma espécie de demonstração da queda de valores do nosso tempo. Respeito o meu amigo, compreendo-lhe a necessidade de exibir-se daquele modo (porque o conheço); mas, estendendo aquele acto até aos limites da sua compreensão e interpretação, não posso deixar de ver ali os sinais da decadência do tempo que vivemos.

    Os romanos, no seu tempo áureo, quando tinham um império e um exército, quando eram donos do mundo, do ponto de vista do poder e da riqueza, afundaram-se e deixaram-se conquistar porque cederam à orgia: quando acordaram dos banquetes desmesurados, dos excessos, a que a glória conquistada os conduziu, já nada lhes restava que valesse a pena festejar! Nada temos em comum com os romanos (no que diz respeito ao império, ao poder e à riqueza), mas somos os actores de um momento de crise, crise muito mais profunda e devastadora que os simples sinais económicos e financeiros do colapso. Estas crises, paradoxalmente, fazem emergir fenómenos de fausto, repetições de rituais orgiásticos, como se quiséssemos agarrar o que nos foge e celebrar o fim dos tempos: e estas explosões de exibição de riqueza correspondem ao culminar e ao declínio do Império Romano, que, depois de morto, nunca mais conseguiu erguer-se. E então, o nosso tempo, este em que, simultaneamente nos afundamos na crise económica, no desemprego,  na fome e na miséria à escala global e, ao mesmo tempo, nos patenteia o luxo, o excesso e a orgia afundar-se-á, definitivamente, tão definitivamente quanto o Império Romano do Ocidente e do Oriente. Não ficará pedra sobre pedra!

     Em Portugal, buscamos desesperadamente os salvadores, e ficamos perplexos, porque quer uns, quer outros nada valem, afinal, enquanto salvadores. Olhamos a democracia – esse governo do povo – e percebemos que a deixamos perverter-se, a um ponto tal, que só destruindo-a, cortando cabeças, instaurando a lei da guerra e da revolta podemos anular a perfídia dos salvadores, proibindo-os de fazer o que quer que seja em nosso nome. E é então que evoco Marx e Engels, nascidos prematuramente, profetas do século XXI, ancorados na escuridão do século XIX, aproveitados e viciados nos estertores maquiavélicos das guerras mundiais, usados em revoluções e governos, antes do tempo, antes da eclosão deste momento que vivemos hoje e que, apenas ele, está pronto para a aplicação dos princípios, nunca levados à prática e ainda letra morta nos livros de Marx e Engels.

    É necessário relê-los em primeira mão, atirar fora as teias de aranha e as falsas teorias dos que ousam apelidar de marxistas governos que tiranizaram e oprimiram, governos que, desconhecedores da verdadeira essência do marxismo, se substituíram (reproduzindo-as mais tarde ou mais cedo) às ditaduras czaristas e outras que vinham, supostamente, desmantelar, para traçarem as linhas do caminho humanista. E quem, ainda assim, não for capaz de eliminar o preconceito anti-comunista, tão obscurantista e inadequado, que leia ao menos o evangelho e medite nas palavras de Cristo, naquelas que dizem que somos todos iguais e que podemos transcender-nos, ultrapassando a fragilidade e a miséria do corpo, naquelas que falam do Reino de Deus e que é, afinal, o Reino do Homem liberto da sua inferioridade, elevado até ao seu poder! Ou então, se formos capazes de entendê-lo, leiamos Nietzsche, à luz do nosso tempo e vejamos a Vontade de Poder nas suas páginas enunciada, não como a materialização de um aberrante Super Homem racista e prepotente, mas como a necessária auto-superação do homem, amesquinhado, mistificado, iniludivelmente tornado o Último Homem.

     «Todas as cartas de amor são ridículas», escreveu Fernando Pessoa, num poema que toda a gente conhece; as dele, Fernando Pessoa, também o foram e ele di-lo no mesmo texto e, ainda que continue o poema, dizendo, «mas afinal só aqueles que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículos», o certo é que guardou as dele para si, não as exibiu para o público, porque elas não se destinavam ao público mas ao ser amado e eram, por tal razão, íntimas, pessoais. E se hoje lhe esventram o espólio e as publicam, nesta ânsia de vasculhar um ser humano até ao âmago, não é porque ele tivesse dado autorização (o poeta morreu em 1935) mas porque o nosso tempo vive da apropriação indigna dos sentimentos dos outros e não recua perante o deleite dos pequenos ridículos, das pequenas fraquezas de alguém, a outros níveis, realmente grande!

 

 

 

 

PSD: UM PARTIDO BUDISTA?

Posted in Reflexões em mi bemol on 17/06/2009 by reginasardoeira
 
 
 
 
PSD: UM PARTIDO BUDISTA?
 
 
 
      O cartaz do PSD aqui reproduzido apareceu nas ruas há alguns dias, logo a seguir à suposta vitória laranja para o Parlamento Europeu e, se digo «suposta vitória» não é por desconhecimento dos números oficiais, que dão, efectivamente, vantagem a este partido, mas porque também levo em conta os 62,54% de abstenções (o que feitas as contas, significa que apenas 37,46% dos eleitores portugueses foram até às urnas votar, e nem todos o fizeram em partidos, visto que 4,64% votaram em branco e 2% anularam o seu voto.).
      Poderia fazer contas e mais contas até perceber quantos foram os portugueses que, de facto,  deram uma maioria relativa ao PSD, mas, provavelmente, essas contas estão feitas e, por isso, nem me darei ao trabalho de intentar tal tarefa matemática. O que me parece óbvio – e nem é preciso ser analista político (que não sou) para ver o óbvio – é que esta vitória não foi vitória nenhuma  do PSD, do mesmo modo que a derrota do PS não chegou a sê-lo, pois a maioria absoluta dos portugueses não votou. Segundo uma estimativa divulgada  pela Direcção-Geral da Administração Interna éramos 9.667.024  eleitores à hora a que abriram as assembleias de voto no dia 7 de Junho; porém, feitas as contas a partir das percentagens já referidas, o número obtido significa, exactamente, que mais de 6 milhões de portugueses não deram o seu voto a qualquer força partidária, sendo o resultado eleitoral da responsabilidade dos outros 3 milhões e qualquer coisa. Estes  milhões de pessoas correspondem a várias multidões; e, no entanto, se fizermos as outras contas, calculando os números exactos de votantes nos dois partidos numericamente mais expressivos, veremos que, afinal, apenas uma minoria escassa ou nulamente representativa dos 9.667.024 eleitores e dos outros todos (que não sendo ainda eleitores também existem com os seus direitos e deveres) possibilitou as respectivas constatações de vitória/derrota. Alardear vitória ou carpir derrota quando mais de 6 milhões de eleitores não demonstraram rever-se em qualquer partido, parece-me um embuste, uma insensatez, uma cobardia.
       E depois aparece o cartaz da vitória-este que aqui reproduzo-apaga a imagem da líder que já nos habituáramos a ver, antes da dita vitória, e atira para diante com o slogan NUNCA BAIXAMOS OS BRAÇOS !
      Apagar a imagem da líder e substituí-la por uma frase na primeira pessoa do plural é engenhoso e significa mais ou menos o seguinte: nós ganhámos, nós todos e não ela, a líder, nós os que votámos PSD, nós os que nunca baixamos os braços!     
      Porém, uma dúvida me assalta sempre que leio a frase: este «baixamos» terá acento referindo-se desse modo ao passado e a sua falta não passa de uma gralha, de um esquecimento, de uma ignorância? Ou é «baixamos» mesmo assim, sem acento, e indica o presente, ou seja, que embora os pudéssemos ter baixado antes, não os baixamos agora?
    Por outro lado, que significa dizer, no passado ou no presente, Nunca baixámos/baixamos os braços? Parece-me uma estranha declaração, ainda que metafórica. Ter os braços sempre levantados pode significar que, pura e simplesmente, estamos impossibilitados de fazer seja o que for, pois, de braços erguidos, nada se consegue executar: ter os braços para baixo e em movimento, isso sim, é sinónimo de trabalho; ter os braços sempre erguidos não só é uma posição impossível de  manter durante muito tempo, como não conduz a realização nenhuma que faça sentido, a menos que sejamos budistas e, quais faquires, pratiquemos a concentração e o domínio dos músculos e dos sentidos e da consciência a tal ponto, que consigamos manter os braços erguidos sem danos. Mas porque serão agora praticantes do budismo os social-democratas, tanto mais que estão ao rubro porque ganharam as eleições europeias e querem ganhar as outras todas? O monge tibetano, que atingiu o nirvana e pode  manter-se de braços erguidos toda a vida sem consequências, não quer vencer eleições, não quer absolutamente nada, porque atingir o nirvana é exactamenete isso: nada desejar, nada querer! Portanto não creio que o PSD seja agora um grupo budista, mergulhado no nirvana após o resultado eleitoral! Mas a verdade é que, a não ser nesta perspectiva de esforço e de treino da meditação oriental, que permite o levantamento dos braços para sempre (mas também a ausência de todo e qualquer trabalho ou esforço) não consigo aderir racionalmente ao sentido de semelhante slogan.
 
 
 
 

O Plágio ou A Cultura às Avessas

Posted in Reflexões em mi bemol on 17/06/2009 by reginasardoeira
 
 
 
 
 
O PLÁGIO
(ou)
A CULTURA ÀS AVESSAS
 
 
 
 
 
[Plágio, do grego,  plagios, «oblíquo», que não está em linha recta, que está de lado, de esguelha (…)]
 
[Plagiar, do latim plagiare, «roubar, esbulhar» (…)]
 
Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, José Pedro Machado, Volume IV, p. 379
 
 
 
 
     José Saramago não precisa de ser defendido, não cometeu nenhum crime, não fez nenhum pecado, não ofendeu ninguém: apenas é um dos maiores vultos da História da Literatura Contemporânea.
     José Saramago não  foi um privilegiado durante muito tempo: lutou por isso e agora é-o, efectivamente. Os privilegiados (seja qual for o tipo de privilégio) apenas são legítimos numa sociedade de Homens se, dos seus privilégios, advier benefício para o resto da Humanidade (seja qual for o tipo de benefício). Aprendi esta tirada com Jonh Rawls, um filósofo moral e político do século XX, cujas ideias de justiça e equidade foram bebidas em Rousseau, Locke e Kant, e, no contexto da sua concepção de justiça e de equidade (não de igualdade), o privilégio só faz sentido se dele resultar acréscimo de liberdade, de justiça ou de riqueza, ou seja do que for de positivo para os outros. Nessa perspectiva, os privilégios de que aufere hoje em dia o escritor José Saramago são efectivamente justos porque ele, efectivamente também, tem contribuído ao longo dos anos para o crescimento do mundo português, em primeiro lugar, e do  mundo em geral, a partir de um certo momento. O crescimento ou desenvolvimento de um país não se resumem ao sector económico e financeiro, ainda que seja difícil crescer a todos os níveis possíveis quando falham as condições mínimas de sobrevivência e logo, no mundo em que vivemos, quando somos economicamente débeis ou deficitários. Por essa razão, José Saramago não pertence ao número dos que, usufruindo de privilégios, têm o dever de alimentar, ou dar emprego, ou permitir habitação aos desfavorecidos (essa tarefa é a profissão de outros) mas, porque é um escritor, acrescenta o mundo com a sua obra. Logo, se tem privilégios, merece-os, não só porque o seu trabalho lhe permitiu tornar-se digno deles, mas também porque apenas esses privilégios lhe possibilitam continuar a privilegiar os outros com o produto do seu labor.
     Estou a falar deste modo e a usar como referência um filósofo neoliberal, mesmo não sendo eu neoliberal do mesmo modo que o não é José Saramago. O neoliberalismo é um modo suave de caracterizar o capitalismo e não defendo, de modo nenhum, o capitalismo e José Saramago também não, seguramente. Porém, vivemos num mundo marcado pelo capitalismo, cada vez mais feroz e desumano, e então qualquer um de nós, que defendemos o derrube do capitalismo e a instauração de uma sociedade justa, eu e Saramago e muitos milhares de pessoas em Portugal e no mundo, não tendo como viver à margem – ela não existe – necessitamos sobreviver o mais coerentemente possível, nesta espécie de selva, onde o interesse sobrepuja o humanismo e a intenção moral se confunde com a intenção legal.
      Saramago não precisa de ser defendido e por isso não vou defendê-lo; vou simplesmente rever alguns argumentos das suas obras e assim lançar uma réstia de luz sobre  quem é José Saramago, na exacta medida em que muitas centenas ou milhares de portugueses, ignorantes e grosseiros, ousam proferir o seu nome, criticá-lo e insultá-lo, sem nunca terem lido um livro dele que fosse. 
    Vejamos.
    Em 1984, Saramago publicou um livro intitulado O Ano da Morte de Ricardo Reis. Para quem não sabe, Ricardo Reis foi um heterónimo de Fernando Pessoa, não teve, pois, uma existência material, apesar de lhe terem sido dadas uma biografia, com data de nascimento e morte , uma profissão e um livro de poemas publicado. José Saramago decidiu transformá-lo numa personagem viva, no contexto da obra citada, e fê-lo viver num certo local de Lisboa, onde o heterónimo (agora vivo) conviveu com Fernando Pessoa e contactou com Lídia ( a musa das suas odes); em 1986, Saramago publicou A Jangada de Pedra, obra em que ficciona a separação geológica da Península Ibérica do resto da Europa, através de uma fenda aberta nos Pirinéus, com todas as consequências turísticas, políticas, geográficas e por aí adiante que adviriam de semelhante deslizamento da Península pelo Atlântico; em 1991, Saramago publicou O Evangelho Segundo Jesus Cristo, no qual tece uma história evangélica em ruptura com o dogma  da igreja católica e, se não lhe aconteceu ser excomungado por ela, foi, nos tempos de um certo governo obscurantista, impedido de participar, com o livro, num concurso literário internacional; em 1995, Saramago publicou O Ensaio sobre a Cegueira, onde  submete as suas personagens centrais, e por fim um país inteiro (com uma única excepção), a uma epidemia de cegueira branca, com todas as consequências possíveis de um tal acontecimento; em 1997, Saramago publica Todos Os Nomes, obra na qual conta a história de um escriturário que se dedica a coleccionar nomes de pessoas famosas, para acabar por descobrir que, afinal elas se parecem com toda a gente; em 2000, Saramago publica A Caverna, onde apresenta uma duplicação de mundos em que um se agiganta, na exacta medida em que o outro se extingue;  em 2004 Saramago publica O Ensaio sobe a Lucidez cujo argumento parte de uma situação insólita que provoca a abstenção total às eleições, numa certa região, sem combinação prévia entre os eleitores, e narra a partir deste mote todas as consequências possíveis;   em 2005, Saramago publica As Intermitências da Morte, cujo pressuposto é o inusitado facto de, a partir de um certo dia e de uma certa hora e durante um certo tempo, ninguém mais morrer num certo país, e,  desta circunstância, retira uma plétora de consequências; em 2008, Saramago publica A Viagem do Elefante, que narra a inverosímil travessia de um paquiderme desde Portugal até à Áustria, como presente do rei D. João III ao arquiduque Maximiliano…. 
      Não são os títulos todos de José Saramago, apenas alguns, talvez os que mais impacto tiveram sobre mim quando os li; porém, se examinarmos bem o ponto de partida de cada um deles podemos concluir mais ou menos o seguinte: Saramago supõe um acontecimento improvável, inverosímil, nunca dantes observado, raramente pensado a sério e expande-o, realisticamente, fazendo o leitor entrar mais e mais nos seus próprios segredos, nos seu próprios meandros existenciais, esquecendo, a partir de certa altura que o argumento é utópico, mas possível, como o são todas as utopias. Logo, há uma linha condutora firme, uma intenção marcada e própria do escritor específico que Saramago é, não havendo qualquer hipótese de o confundirmos com outro, a partir do momento em que nos envolvemos na leitura.
      Portanto digam-me: como é possível que alguém se tenha lembrado de acusar o genial Prémio Nobel da Literatura, de plágio, só porque um dos argumentos se parece  com o ponto de partida de um certo conto, tanto quanto uma  formiga se parece com um hipopótamo? E mais: como é possível que percam tempo a comparar o que não tem comparação possível, exibindo parágrafos de um e de outro como se um (o de Saramago) fosse o produto da cópia do outro? Mais ainda: porque perdem tempo a vituperar o grande criador que Saramago é nesta arena promíscua e medíocre que pode bem ser a internet, para todos os que a usam de má-fé ou nos limites da mais supina ignorância?
      Li o conto paupérrimo do mexicano Teófilo Huerta e percebi apenas o seguinte: o homem é um escritor medíocre, de um conto superficial e misérrimo, onde aparece o mesmo argumento básico que Saramago glosa num dos seus romances. Descobre-o quatro anos depois de ter saído o livro do escritor português, sendo, alegadamente, o seu conto de uma data anterior; percebe que, se saltar para a arena reclamando a paternidade, o exclusivo da ideia, e acusando de plágio nada mais nada menos que um  prémio Nobel de Literatura com créditos firmados, poderá sair da obscuridade, pela negativa é claro, mas sair e ser notícia por algum tempo, e não hesita, faz isso mesmo! E depois todos os papalvos que nunca leram uma linha sequer de Saramago, mas que o detestam porque ele é o que eles não conseguem ser, dão vivas ao embuste, cobrindo-se de um ridículo que não vêem!
      Como disse no início não estou a defender Saramago, ele não precisa: atingiu uma espécie de imunidade muito específica, aquela que a maioria dos artistas só granjeia depois de ter morrido mas que, felizmente para ele e para nós, teve em vida – pode dizer o que quiser, escrever o que bem entender, viver como e onde lhe apetecer, falar alto ou baixo, sorrir ou fechar a cara…nada, mesmo nada lhe tirará o valor e poderá obscurecer-lhe o mérito!